Tania Mara Galli da Fonseca

Enviado por aarquivista, seg, 2017-11-20 12:37
Porto Alegre

♣ Professora dos Programas de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e Informática Educativa/UFRGS

 

Nosso Modo Grupal

O Grupal como Modo de Produção

Tania Mara Galli Fonseca

O Grupo de Pesquisa Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar integra-se aos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e de Informática Educativa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Brasil, sendo coordenado por sua fundadora a psicóloga Professora Doutora Tania Mara Galli Fonseca.

A problemática Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar tem se constituído, por alguns pares de anos, como plano de composição para o pesquisar de um coletivo de pesquisadores. Sua duração, portanto, coincide com a sua imanente multiplicidade interna, virtual e contínua, irredutível ao número, como nos aponta Deleuze, em sua leitura de Bergson. Ambos filósofos mostram-se sempre dispostos a nos salientar que as questões relativas ao sujeito e ao objeto devem ser colocadas mais em função do tempo do que do espaço.

Desta forma e com base nesta inspiração, temos conduzido diversos projetos e atividades que privilegiam um olhar sobre as formas institucionais e subjetivas em momentos de passagem, em que sua história mostra-se corroída pelo tempo, encontrando-se em estado emergente outras configurações. Temos tratado de examinar, em tempos de crise e desrealização, modos de formação de certas práticas e equipamentos sociais, como é o caso de nosso atual projeto de pesquisa Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar no contexto da Reforma Psiquiátrica, no qual buscamos cartografar micro-movimentos dos sujeitos implicados na nova ordem psiquiátrica, dando a ver seus modos de resistir/ no sentido de re-existir, vinculados às suas estratégias de criação. Interessa-nos cultivar um modo de olhar para dentro das dobras de um mundo a se constituir, atribuir sentido às ínfimas e imperceptíveis oscilações, buscar a vida em sua potência de construir saídas para o viver e para o desejo, mesmo que em suas quase-manifestações. Julgamos que fazer incidir a pesquisa em campos devastados pela violência dos saberes e dos poderes de uma dada configuração social para observá-los em seus momentos de desinstitucionalização, pode nos levar a considerar os campos empíricos sob o enfoque de um plano de composição comparáveis ao deserto, de cujo revolvimento e desembrulhamento pode resultar a atualização de multiplicidades imantadas em sua superfície, liberação, portanto, da vida em sua nudez, ainda não materializada em corpo, ainda não legitimada como saber científico, mas que ali se encontra à espera de passagem e de agenciamento para a constituição do que Deleuze anuncia como um povo por vir. Podemos pensar, de um modo especial, que se trata de colocar em análise o próprio coeficiente de transversalização concernente ao estado do social em momentos específicos de sua constituição e dos quais emergem provocações e tensões resultantes do continuado confronto entre as forças instituídas – próprias à conservação das formas históricas – e as forças instituintes – próprias à processualidade -, que formiga e pulsa nas figurações, pressionando a moldura das formas.

Podemos caracterizar nossos estudos como orientados pela busca de tornar visíveis as conexões entre um dentro (as formas instituídas) e um fora (as forças instituintes que as dilatam e dilaceram), tratando-se de sondar modos de experimentar a diferenciação e espreitar a fluidificação das formas instituídas. Assim, no caso de nossa atual pesquisa, percorrer as trilhas da desospitalização e da desinstitucionalização do louco e da loucura – propostas e implementadas pela Reforma Psiquiátrica -, pode dar a ver e falar modos de se relacionar com a alteridade, possibilitando configurar práticas sociais, coletivas e individuais, governamentais ou não, e seus respectivos desdobramentos nos processos de subjetivação e objetivação.

Buscamos situar nossa produção em sintonia com aquele caráter de crítica ao instituído, com fins de produzir-lhe crise, no sentido de potencializar-lhe, através da desnaturalização de suas referências identitárias, outras possibilidades de seu vir-a-ser, podendo-se engendrar daí a invenção de linhas de fuga, não para fugir do mundo, mas para fazer fugir certos mundos que se construíram sob a égide da vampirização das forças dos corpos e de seu conseqüente enfraquecimento vital. Assim é que, associamos o fazer científico ao fazer político, uma vez que falamos em uma produção interessada na própria dinâmica instituído-instituinte, apontando não para uma origem dos modos de ser e pensar, mas para as multiplicidades inscritas em sua fundação. Entendemos que conhecer não se refere à passagem de um não-saber ao saber, mas situa-se exatamente numa passagem desequilibrante e crítica em que se torna possível desembrulhar algo do nó problemático que constitui os objetos de nosso olhar, desenvelopá-los, identificar-lhes as forças constituintes, rachá-los, não para neles encontrar o já conhecido e o familiar, mas para produzir-lhes novos sentidos: toque-agenciamento àqueles virtuais, ali depositados, ainda invisíveis, inauditos, imperceptíveis, mas que se encontram à espreita da oportunidade de vir a emergir e acontecer como parte de um possível outro futuro.

Autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari nos mostram que é no interior de tempos e espaços específicos que se gestam estratégias de controle da vida e do viver.

Na operação de fecundação que procuramos investir tanto no campo empírico quanto no científico que nos concernem, estranha e paradoxalmente, nos desalojamos de nossas certezas e verdades, processando transmutações subjetivas o que nos evidencia a indissociabilidade do ato de conhecer daquele de criar e diferir. Da mesma forma, nosso posicionamento no campo da pesquisa, não concerne a uma posição superior de controle da produção em curso. Tornamo-nos produtos e produtores simultaneamente e sentimo-nos como que habitantes dos fluxos, emprestamo-lhes nosso próprio corpo e mente, nossas potencialidades para que se expressem e adquiram significação e existência. Neste processo de conhecer, fecundado também pela intuição e pelas sensibilidades do corpo, damos à luz frutos da invenção, os quais, ao nascerem, não nos oferecem soluções aos problemas mas nos propõem perguntas e estranhamentos. Cognição encarnada, não recorrente a regras abstratas e tampouco a juízos morais. Cognição que nos termos de Francisco Varela mostra-se como combate à noção de mundo dado, descentrando-se da noção de um sujeito que passa a ser substituída pela de agente coletivo e processual, situando-nos em um processo em que não há entidade substancial, um piloto ou centro de condução. Aqui, a produção de conhecimentos adquire uma conotação viva e vital, uma vez que se associa à aprendizagem do corpo para criar outras formas e outros mundos desde as rachaduras introduzidas no sistema cognitivo. É desta forma, que Varela propõe sua tese de que a competência ética é o progressivo conhecimento da virtualidade do si-mesmo.

Como pretendemos fazer notar, os argumentos até aqui desenvolvidos buscam ancorar um específico ponto de vista a respeito dos modos de produção no que tange à ciência Psi e à subjetividade. Ambas produções incidem, segundo nosso entender, no terreno das instituições e das práticas sociais, colocando em foco as tensões entre elas, uma vez que não nos afastamos da questão instituído/instituinte, binômio que se associa intimamente à pesquisa dos modos de subjetivação contemporâneos. É no âmbito desta linha de pesquisa que se tem discutido a respeito dos operadores conceituais e metodológicos que nos possibilitam focá-la em seus objetivos. É nesta linha e a partir dela que tem aportado e se produzido significativa demanda proveniente de estudantes/pesquisadores, advindos de áreas como a da psiquiatria, medicina social, ciências sociais, administração, filosofia, artes, terapia ocupacional, fisioterapia, educação, além é claro, da própria psicologia. Tal demanda se traduz na opção de analisar práticas profissionais e institucionais vistas como produtoras de subjetividade à luz das ferramentas conceituais derivadas do aporte acima brevemente indicado.

As referências que sustentam nossa argumentação encontram sua fundação no que campo denominado Filosofia da Diferença têm em Gilles Deleuze e Félix Guattari as principais contribuições. Da mesma forma, Michel Foucautl é convocado para entremear-se àqueles, dando ênfase às noções de saber-poder e genealogia. Partindo de uma posição crítica e construtivista, os filósofos franceses oferecem-nos uma perspectiva inovadora em relação à análise da subjetividade, ao tempo e à história. O modo de produção da subjetividade se inscreveria como plano social e histórico, tendo como foco, antes do que os próprios sujeitos, estes já considerados efeitos dos modos de subjetivação vigentes, as condições que tornaram possível determinadas formas de pensar, ser , conhecer, sentir e estar no mundo. Neste sentido, esta teorização, “despsicologiza” a humanização dos indivíduos, ultrapassando e criticando os enfoques que a reduzem ao edipianismo e às cenas familiares afetivas precoces. A heterogênese é chamada para dar conta da caosmose, processo que inclui a invenção do mundo e dos sujeitos a partir de um conjunto de elementos, humanos e não-humanos, cujos efeitos dependem das conexões estabelecidas entre estes, consideradas desde o plano das multiplicidades e das intensidades. A trama ontogenética engendradora das formas e dos seres existentes não permite falar em origem, uma vez que a concepção e existencialização está sempre referida a uma processualidade complexa não passível e ser reduzida à autoria de um único sujeito e tampouco de um único objeto. Estamos imersos em um processo de constituição do si e do mundo absolutamente sem objeto e sem sujeito, o que nos faz reportar para um plano de forças e intensidades, plano molecular e informe, caótico, de cuja organização e desacelerações emergem acontecimentos geradores de novos regimes de enunciação e visibilidade. Deste ponto de vista, a subjetividade é vista como fabricada, constituindo-se em um dos efeitos dos saberes-poderes vigentes em dada situação. Da mesma forma, a produção científica é desacralizada em relação ao seu estatuto de verdade e, sendo re-lançada à processualidade que a tornou possível, se mostra como produção encarnada e efeito de certos regimes de poder, podendo colocar-se a seu serviço ou a eles resistir para a criação de novos caminhos. Entendendo-se que é sempre a partir do plano de composição imanente ao estado de coisas vigentes que se encontram as possibilidades de resistência e criação, pode-se pensar que este aporte filosófico rompe radicalmente com a transcendência, deslocando o ponto do nosso olhar para a própria imanência, o que passa a orientar nossos pressupostos por uma Psicologia da Singularização, que defende sua construção apoiada não em fundamentos que conduzam para uma ciência normativa, generalizante e universalizante, mas em fundações locais, específicas e únicas. A ética essencial neste paradigma refere-se ao modo de acolhimento que dá ao próprio processo de diferenciação das formas existentes que são, por sua, lançadas numa ontologia de dupla face: o plano instituído das formas e o plano instituinte das forças que as habitam. Tudo pertence à ordem do finito-ilimitado, sendo o mundo efeito da produção de um tempo criador, de uma evolução sem teleologia, sem objeto e sujeito, movida por forças e agenciadas por intercessores absolutamente intempestivos e múltiplos. Tempo-rei – Aion -, não reconciliado com a lógica do progresso, mas orientado para a expansão da vida e para a manifestação da multiplicidade que lhe concerne.

Torna-se importante lembrar que a temática Modos de Trabalhar, Modos de Subjetivar desdobra-se em diversos tempos, sendo que o seu primeiro corresponde à sua constituição como grupo de estudos e pesquisas, reconhecendo-se, então, como agenciamento maquínico de corpos. Daí, decorre que a articulação de tais corpos com os enunciados que produzem, fazendo emergir e funcionar uma espécie de dobradiça, cujas abas encontram-se unidas e articuladas pelo mesmo eixo-gonzo, ou seja, por um modo de fazer. Assim, o que interessa neste particular é assinalar, no âmbito deste agenciamento, mas debaixo da linha de visibilidade, um fazer dos corpos e dos saberes que requer mais do que uma catalogação das formas tomadas em suas diversidades e quantidades. O tornar visível aquilo que está dobrado no avesso das aparências requer, como nos mostra Deleuze através de Bergson, que à inteligência deve juntar-se a intuição, considerada esta última como a possibilidade de simpatia com objeto, a ponto de captar-lhe as tendências que o atravessam e regulam a sua existência e os seus devires.

No âmbito de nosso modo grupal de produção, são engendradas, por associações insuspeitadas, as práticas sociais de nosso trabalho, como composições dinâmicas que se impregnam nas coisas como o próprio modo de fazê-las. Sujeito-mundo são considerados planos que se implicam e não pólos que se relacionam e interagem. Produção de dupla captura – trabalhador e trabalho animam as artes do fazer através de recombinações das experiências e dos saberes e de seu avançar incessante. Associa-se, neste particular, saúde e trabalho uma vez que aquela depende da possibilidade de ultrapassamento da norma que define o normal momentâneo, tolerando as infrações à norma habitual e instituindo novas regulações para novas situações.

O trabalho efetivamente realizado, portanto, não pode ser reduzido a aspectos operatórios, pois inclui equívocos, limitações, variabilidade, criação, transgressões e também mobilização subjetiva. É ato de transformação do mundo e do sujeito. Do ponto de vista de nossa pesquisa e estudo, tem como categoria essencial o seu próprio processo, o seu acontecer, o que nos conduz a problematizá-lo desde o campo operatório em que se inscreve, considerando o seu desenrolar no dia-a-dia, através de uma análise micropolítica que nos permita visibilizar e escutar as manobras criativas alojadas no seio das práticas, as quais, ao mesmo tempo que garantem a realização da obra, a impregnam com a poeira do tempo, situam sujeitos e objetos como processualidade em devir.

 


2013


Ferramentas de Concatenação

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