A discussão que reuniu o artista Rubens Mano e os críticos Celso Favaretto e Lisette Lagnado
O historiador da arte norte-americano Michael Brenson, durante visita a São Paulo para uma série de conferências, definiu nesses termos a característica mais evidente da nova arte pública: ser moldada, num grau decisivo, pelas circunstâncias e condições de cada lugar específico, no sentido não apenas de levar em conta determinantes estéticas do espaço, mas ainda de "tornar o espectador física e mentalmente consciente da dinâmica espacial e social desse espaço".
Mais de seis anos após a "intervenção" de Brenson na cidade (ocorrida durante o ciclo "Seminários de Arte Pública", organizado pelo Sesc), Vazadores, participação do artista Rubens Mano na 25a. Bienal de São Paulo que se encerrou no último dia 2 de junho, adiciona alguns complicadores à afirmação do crítico: tensiona as fronteiras da instituição tradicional, revelando um pouco de sua estrutura interna, testando assim a validade daquela afirmação.
Pondo à prova o tema que regeu esta Bienal, "Iconografias Metropolitanas", que pretendia debater a estrutura das cidades, Mano abriu uma "outra" passagem no Pavilhão das Indústrias do Parque Ibirapuera, pela face oposta à entrada principal do edifício modernista, com materiais (vidro e ferro) idênticos aos usados na construção da fachada original. O visitante que "descobrisse" esta possibilidade de acesso (tanto para dentro da Bienal como para voltar ao parque), passaria pela experiência de questionar o circuito oficial.
Ora, preocupada com a questão da segurança das obras e buscando controlar o acesso indiscriminado, isto é, gratuito, a Fundação Bienal instalou mecanismos de controle do fluxo de pessoas, contrariando o projeto do artista. Depois de longa queda-de-braço entre artista e instituição, Mano pediu para se retirar da mostra a 15 dias de seu final.
Esta foi uma das questões discutidas no primeiro debate promovido por Trópico, em parceria com a Pinacoteca do Estado, na tarde do dia 25 de maio (leia, no final deste artigo, trechos editados das questões colocadas pelo público).
Além de Rubens Mano, a mesa contou com a contribuição do professor da USP Celso Favaretto, autor de A Invenção de Hélio Oiticica, entre outras publicações. A mediação foi feita pela crítica de arte Lisette Lagnado, editora da seção "Em Obras", de Trópico.
Lagnado introduziu a mesa-redonda com o problema da "reapropriação do espaço público", pontuando a necessidade de "resposta aos processos de exclusão em curso na sociedade contemporânea". Mencionou que o papel do Estado desapareceu de uma discussão que, afinal, "parecia lhe pertencer". Salientou, no entanto, a inexistência de um "entendimento comum" do significado dessas ações, gerando uma confusão conceitual entre intervenções urbanas, novos espaços, monumentos na rua e arte pública. Deixou no ar perguntas que norteariam o debate: a possibilidade de acreditar hoje na inserção do artista na vida cotidiana (se este consegue interferir em questões cruciais no planejamento da sociedade, se seu gesto inscreve alguma diferença na paisagem urbana).
Da rua ou na rua?
Celso Favaretto lembrou que foi na transição dos anos 60 para os 70 que se inaugurou um recarregamento semântico dos lugares de exposição e evidenciação da arte, que se multiplicaram, não mais confinados aos museus. "É neste momento que no Brasil se inventa a rua e outros espaços possíveis de serem apropriados, trazendo à tona este problema fundamental: tudo o que se pode dizer da arte contemporânea está ligado a seu lugar de exibição. O caráter institucional de onde se colocam as obras é determinante para aquilo que se quer dizer", afirmou.
Dentre as muitas questões levantadas em torno de Vazadores, está a inserção do artista na sociedade e sua crítica em relação às instituições com as quais colabora. Mas Favaretto não se deteve apenas na controvérsia gerada pela obra de Rubens Mano, desenvolvendo pontos que enriqueceram a discussão, como o lugar social da arte. "Imagina-se que a cultura deva ser o lugar visado pela arte em locais públicos. Ou seja: pensar a arte pública é pensar a questão política da institucionalização de seus lugares de aparecimento", disse. "Sem a consideração deste lugar, que é sempre político pois apropriação social de uma função pública, não é possível pensar o destino da arte pública hoje. O problema é discutir se esta apropriação está de fato cumprindo uma função relevante para a democratização e a cidadania."
Avançando na discussão, Favaretto afirmou que a questão da apropriação de espaços públicos tenta hoje retraduzir questões modernas e, em geral, utópicas. "Na base desta postura está a distinção imediata entre o mundo da arte e o da vida. A utopia que está em questão há muito tempo é que se poderia franquear estes dois domínios."
Contudo, lembrou Favaretto, quando sonhamos que é possível uma integração real entre as dimensões da arte e da vida, corremos o risco de cair no ridículo ou no patético. Segundo ele, nas bases sobre as quais nossa sociedade está estabelecida, e na cultura da cidade de São Paulo ou outra metrópole, este franqueamento corre o risco de resultar em mera estetização da vida cotidiana. "A arte implantada em espaços públicos ou ali realizada como intervenção sonha em ser uma arte da rua e não apenas na rua", compara. Neste caso, as categorias artísticas deslizariam da arte para os movimentos de vida, aí tomados a partir das categorias estéticas.
Um exemplo recente, embora frustrado, de tentativa de realização da arte na vida, foi a criação de um ambiente-instalação sob o Viaduto do Glicério, atribuído ao artista norte-americano Vito Acconci (que renegou a autoria), integrante da última edição do Arte/Cidade. A obra criou um espaço que poderia ser usufruído pela população de baixa renda que já habitava o local.
"O uso público daquela cabine, no contexto da vida cotidiana das pessoas que ali moravam, acabou desapropriando a intenção primordial, que era artística. O efeito imediato é que a proposição artística perdeu sua função", acredita Favaretto. "A obra adquiriu importância apenas porque foi veiculada publicamente como uma intervenção artística, com a ajuda do discurso que se produziu sobre ela e acabou provocando um debate na sociedade."
O público se apropriou da obra de Acconci não porque era "artística", mas porque atendia a uma necessidade imediata. "Devemos nos perguntar se um trabalho como este tematiza e tensiona o quê? A arte como utilidade?", perguntou Favaretto. "Ela tensiona a arte como capaz de diferenciar espaços públicos ou ela quer dizer que o lugar próprio da arte, depois de todas as experiências modernas, é o lugar público?"
Dessa forma, o dualismo arte e vida (traduzido aqui por arte e lugar público) seria atravessado por duas vias possíveis: de um lado a arte pode ser marcada pelo valor óbvio de ornamentação (mera carnavalização da arte em um espaço público) ou seria esta obra pública porque de fato consegue intervir e modificar?
Artista e sociedade
Rubens Mano fez uma introdução geral a sua obra e a relacionou com a questão da crítica institucional hoje. Sua fala foi ilustrada por uma projeção de slides de diversos momentos de sua carreira artística. Foi uma oportunidade rara de conhecer um percurso "silencioso" que muitas vezes passa desapercebido (característica que pertence à estratégia do trabalho), sem deixar vestígios a não ser imagens de registro.
"Boa parte dos meus projetos são realizados sem qualquer divulgação. Não há convites, matérias em jornais ou aviso prévio. Algumas vezes são instalações e intervenções colocadas no espaço da cidade sem que a maioria das pessoas saiba se tratar de um trabalho de arte", afirmou. "Isso não significa que as ações sejam realizadas em qualquer interesse quanto à recepção, mas que estou explorando nestes projetos outras formas de comunicação e propagação de minhas intenções. Existe a pretensão de uma outra superfície de contato em relação às pessoas alcançadas por esta experiência."
De maneira técnica, e adotando certo distanciamento, Mano mostrou suas obras uma a uma, lendo sob a luz de uma lanterna o texto que havia preparado. Entre os trabalhos de intervenção pública projetados, um destaque praticamente "inédito": a iluminação interna de algumas bocas-de-lobo com lâmpadas fluorescentes, em um bairro da periferia de São Paulo. À noite, parte dessa luminosidade escapava por aqueles buracos, tornando visível um fundo que não podemos enxergar (que universo se esconderia dali para baixo?). Novamente, nenhuma indicação sinalizava de que se tratava de uma "intervenção artística".
Rubens Mano exibiu também slides de uma obra que consistiu na disposição de conduítes de aço do lado externo da Oficina Cultural Oswald de Andrade, junto aos muros e escadas, espalhando algumas tomadas próximo ao chão, criando assim uma pequena rede imantada que fornecia energia elétrica à disposição da população (24 horas por dia, durante um mês e meio). Alguns souberam usufruir dela, como o vendedor de discos que ali plugou sua vitrola.
Outro trabalho de impacto exibido em slides foi o Detetor de Ausências, criado para a edição do evento Arte/Cidade de 1994 ("A Cidade e seus Fluxos"): consistiu na projeção de dois enormes fachos de luz perpendicularmente ao Viaduto do Chá, deslocando o tempo-espaço ao interceptar os passantes, que se desmaterializavam ao cruzar -em algum momento e em algum ponto- um lugar impossível de ser contornado.
Uma "obra" à parte foi a projeção das imagens dos testes realizados com os dois projetores militares, da época da Segunda Guerra, no litoral paulistano. Em ambiente lunar, espécie de cenário para uma ficção científica contemporânea, Mano e seus assistentes aparecem próximos a um caminhão, que tem na caçamba um dos projetores, lançando em direção ao céu um gigantesco raio de luz branca.
De acordo com Mano, Vazadores procurou estabelecer uma posição crítica em relação aos vários papéis desenhados dentro do circuito da arte contemporânea. "Seja por abordar as implicações econômicas e sociopolíticas que permeiam a exposição, seja por questionar nosso papel de agentes no interior do corpo social", disse. "Boa parte da produção contemporânea vem relativizando o conceito de site-specific, informando sobre a importância de um espaço crítico para discutir as instituições, redefinindo nossa idéia de lugar ou anunciando de que maneira proposições estéticas, questões políticas e socioeconômicas precisam ser igualmente considerados."
Mano acredita que a relação do artista com este ambiente deva se orientar muito mais por uma "atuação fluida e discursiva", do que fixa e dirigida. "O artista não é um criador de sociedades, tampouco deve se tornar um espelho passivo da realidade. Ele é apenas um membro da comunidade que não pode se afastar das condições do ambiente em que vive."
Para Rubens Mano, trata-se de uma extensão do que se entende por "desbordamento" do trabalho de arte. "A arte dos anos 90 vem se aproveitando dos debates produzidos no campo da antropologia cultural para realizar propostas artísticas que estimulam a capacidade de os habitantes recuperarem seu espaço", afirmou. Para autores como Pierre Bourdieu e Homi Bhabha, citou Mano, o espaço é colocado como uma construção cultural e a cultura como um aglomerado de relações espaciais.
Vazadores talvez tenha incomodado por tangenciar este ponto, ao oferecer uma transição possível entre mundos separados por grossas paredes de vidro. De resto, envolveu a instituição, o meio artístico, a mídia e toda a sociedade. A obra trabalhou justamente nesta linha que, no interior do "mundo da arte", a separa do "mundo da vida".
Para além da estetização do cotidiano
Colocando a questão sob a perspectiva mais ampla da cultura, situando como o Brasil lida com ela nos dias de hoje, Celso Favaretto afirmou que, por "arte pública", pode-se entender muita coisa. Tanto a arte que já nasce pública na sua produção quando é gerada coletivamente, como "a arte que intervém nos espaços públicos" ou, indo mais além, que procura "intervir nas questões comuns da vida". Mas, deixou claro que a arte simplesmente implantada no espaço público não é necessariamente pública, podendo ser algo meramente ornamental.
OLIVA, Fernando. A discussão que reuniu o artista Rubens Mano e os Críticos Celso Favaretto e Lisette Lagnado. Trópico/Uol. 2002 (8 p.) Consulta em: agosto/2006