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Texto

Mirar o vazio: um olhar coletivo acerca da Bienal de São Paulo

Enviado por aarquivista, seg, 2023-03-13 22:29

São Paulo

Mirar o vazio: um olhar coletivo acerca da Bienal de São Paulo

André Mesquita, Cristina Ribas, Euler Sandeville Jr., Flavia Vivacqua, Gavin Adams, Gisella Hiche e Graziela Kunsch

 

Escrever coletivamente um artigo sobre a Bienal de São Paulo acentua uma posição crítica: mais do que apresentar um texto bem acabado sobre o esgotamento institucional de um sistema da arte, do qual faz parte a Fundação Bienal de São Paulo, interessa-nos que o próprio processo colaborativo de redação explicite o nosso lugar de fala e a nossa forma de inserção nesse sistema (do qual não estamos excluídos).

Como artistas, pesquisadores ou ativistas, muitas de nossas ações encontram-se articuladas em redes colaborativas e horizontais. Essas redes são constituídas por negociações entre artistas e movimentos sociais, por projetos com comunidades específicas, pela abordagem de práticas multidisciplinares e por iniciativas de encontro e residência, questionando formas tradicionais de autoria, historiografia e produção de conhecimento, buscando criar diálogos e intervenções nas cidades1. São experimentações que têm uma atuação frente à situação política e econômica em que se encontram as grandes fundações culturais e sua mercantilização, justamente por contrapor ao arranjo institucional a diversidade conflituosa das relações em territórios distintos e suas múltiplas temporalidades, a circulação da arte em outros contextos e o desenvolvimento de novas linguagens, ações e desenhos sociais, que desafiam os modos tradicionais de produção e reprodução de valor.

Na última década a Bienal tem evidenciado publicamente as dimensões de sua crise, pautada por questões financeiras, disputas políticas e pelo modelo de grandes exposições. De modo circunstancial, essa crise começou a ser discutida no âmbito da própria exposição, impondo uma reflexão sobre a distância que se estabelece entre a intencionalidade da arte contemporânea que seleciona e abriga obras e projetos através de vínculos que se dão com o mercado de arte e seus circuitos, em contraposição às práticas artísticas que criam desenhos autônomos e produzem engajamentos importantes. As duas últimas bienais, de títulos bastante sugestivos – Como viver junto (27ª Bienal, 2006) e Em vivo contato (28ª Bienal, 2008) – tornaram bastante explícita esta questão.

O claro interesse da 27ª Bienal por uma arte que atua no interesse público, engendrada em espaços de conflito e de relação com distintos contextos sociais, procurou questionar a crise de representação em um mundo globalizado, abolindo também as representações nacionais dentro da história das grandes exposições1. Importante citar aqui a tentativa reflexiva da Bienal de 2006 de conciliar neste jogo entre instituição, informalidade e crítica, um programa de seminários iniciado antes da exposição debatendo temas levantados pela equipe curatorial, a escolha do “programa ambiental” de Hélio Oiticica como motor histórico e paradigma conceitual da Bienal e a inclusão de projetos colaborativos realizados no âmbito das práticas sociais e manifestações políticas, como Eloisa Cartonera (Buenos Aires), Taller Popular de Serigrafia (Buenos Aires), Long March Project (Nova Iorque/Pequim), Daspu (Rio de Janeiro), JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube (São Paulo) e projeto Guaraná Power do coletivo Superflex (Amazônia)2.

Segundo Mônica Nador (JAMAC), a curadora da Bienal de 2006, Lisette Lagnado, havia sinalizado o seu receio de institucionalizar um projeto de arte criado na periferia de São Paulo dentro de uma grande exposição. A negociação política entre JAMAC e Bienal se deu principalmente no âmbito dos projetos que pudessem manter este espaço autônomo com uma circulação mais diversificada, na forma de visitas ao local e uma programação de encontros, oficinas e outras atividades, dando ao JAMAC ares de um “centro cultural”3 .

Projetos curatoriais como o da 27ª Bienal proporcionaram a chance de percebermos as ambivalências de uma grande exposição, de refletirmos sobre como os artistas negociam com uma instituição seus espaços de pesquisa e trabalho, bem como a circulação de suas atividades e registros, tensionando o papel do curador como mediador entre artista e público e o trabalho do crítico de arte na legitimação e escrita “oficial” dessas histórias. Tal ambivalência, porém, parece ter ficado ainda mais evidente no projeto da 28ª Bienal, principalmente no que tange aos limites da curadoria e à dimensão pública de uma grande exposição de arte.

O programa expositivo e as atividades da 28ª Bienal apresentaram propostas relevantes, como a montagem de “nichos” em uma área intitulada Video Lounge, com uma programação intensiva de vídeos históricos de ações, performances e outros registros escolhidos por diversos curadores1; uma plataforma de conferências sobre a história da Bienal de São Paulo, aí incluídas propostas dos convidados para o futuro da instituição; um espaço de leitura que disponibilizava catálogos e publicações de bienais de diversos países e registros em vídeo de todos os debates e performances realizados ao longo da exposição; o jornal 28b, inserido dentro do jornal gratuito do metrô de São Paulo e assim largamente distribuído; e o projeto educativo Ambulantes, que levou as proposições da Bienal para pessoas que não necessariamente visitariam o local da exposição.

Os curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen foram alvo de um intenso bombardeio de opiniões sobre a forma como conduziram a mostra2. As críticas recaíram especialmente no modo como responderam à ação do grupo de 40 pichadores que ocupou as paredes internas do pavilhão da Bienal na abertura da exposição. A recusa dos curadores em participar de uma discussão pública sobre a injusta prisão de uma das participantes da pichação, Caroline Pivetta da Mota3, revelou um lado delicado e controverso da Bienal de São Paulo: a dificuldade das grandes exposições em lidar com uma ação que traz para dentro do acontecimento da arte as políticas da vida. Os curadores da 28ª Bienal convidaram o público a refletir sobre o vazio de um dos pavilhões, em uma mostra marcada pelo número reduzido de obras e o corte em seu orçamento. A proposta conceitual parece ter tomado a forma de uma vingança simbólica contra a “instituição arte”4, através da ação independente dos pichadores. O ato pode ser considerado uma resposta às proposições da curadoria, que no texto de abertura da exposição afirmou:

A transformação do andar térreo do Pavilhão Ciccillo Matarazzo numa praça pública, como no desenho original de Oscar Niemeyer para o parque em 1953, sugere uma nova relação da Bienal com seu entorno - o parque, a cidade -, que se abre como a ágora na tradição da polis grega, um espaço para encontros, confrontos, fricções. (...) Ao contrário das bienais anteriores, que transformaram o interior do pavilhão modernista em salas de exposição, desta vez o segundo andar está completamente aberto. É nesse território do suposto vazio que a intuição e a razão encontram solo propício para fazer emergir as potências da imaginação e da invenção. Esse é o espaço em que tudo está em um devir pleno e ativo, criando demanda e condições para a busca de outros sentidos, de novos conteúdos.

No entanto, tão logo a cidade, os confrontos, as fricções e os novos conteúdos ocuparam aquele espaço, foram acionados os seguranças e a polícia. O curador Ivo Mesquita classificou a ação dos pichadores como "arrastão" e "tática terrorista". Como medida protocolar, a Bienal instalou detector de metais e colocou vigias para revistar visitantes. Muito provavelmente, se esta ação de reivindicação do espaço público da arte por meio de atos de contestação tivesse sido orquestrada por algum artista participante da 28ª Bienal, ninguém seria preso e a pichação seria considerada “intervenção artística”.

Em uma realidade onde jovens oriundos da periferia têm pouco ou nenhum acesso a recursos institucionais, a pichação sobre o vazio de uma das mostras de arte mais importantes do mundo, e a prisão de uma pichadora por quase dois meses, só tornaram evidentes as dificuldades de um sistema de arte em reconhecer a potência de transgressão no âmbito da linguagem e do comportamento. Assim, a instituição deixou patente sua força na produção de valor ao normatizar quais práticas artísticas e expressivas são permitidas, e quais se tornam ilegítimas, privilegiando aquelas que corroboram na produção de sentido mais ou menos submetido ao controle curatorial.

Muito embora a pichação seja foco de cooptação e objeto de interesse acadêmico e de mostras artísticas no exterior1, sua prática, assinala Teresa Caldeira, ainda contesta as múltiplas formas de desigualdade social que modelam a sociedade e o espaço urbano2, e que são a própria exposição do conflito. No caso da 28ª Bienal, a dificuldade de lidar com o imprevisto, com a apropriação de seu espaço, recorrendo ao sistema judiciário e carcerário, achata o papel diferenciado que uma instituição cultural poderia assumir.

Talvez seja o caso de recordarmos a provocação de Henri Lefebvre feita há algumas décadas e a levarmos aos pilares da Bienal de São Paulo em suas dificuldades de contextualizar-se: “Você acha que a arte é exterior e superior à vida real, e que aquilo que o artista cria está em um plano transcendental?”1. Muitos dos artistas participantes das bienais de São Paulo não deixaram de fazer crítica institucional, mas isso não significa que a crítica não tenha sido anulada, desconsiderada, cooptada ou normatizada pela própria instituição. O artista Nicolás Robbio teve parte de seus desenhos sobre a crise da fundação e o projeto de curadoria da 28ª Bienal censurados2 e Rodrigo Bueno retirou-se da exposição.

O ponto que levantamos frente aos episódios citados é a neutralização institucional de um debate pela própria maneira como a curadoria de uma Bienal dialoga ou interage com um público alargado3, que ultrapassa aquele formado por uma pequena “comunidade” envolvida com a face da arte que transita por circuitos de galerias e colecionadores. Como resultado desta neutralização, a Bienal de São Paulo transparece em sua estrutura um evento que compromete na sua gênese qualquer potência em operar os desafios expostos, através de sua intolerância com fatos que incidem diretamente sobre as fronteiras culturais, sociais e econômicas. Com isto, a Bienal torna-se homogênea na sua diversidade e fragmentação, demonstrando pouca receptividade para a diferença e para ações que questionam a sua autoridade.

Ao mesmo tempo, Ricardo Basbaum no artigo “Viva o contato, viva a vaia”4, considera que as bienais de 2006 e 2008 proporcionaram avanços. Para ele, essas duas bienais iniciaram uma curva ascendente para o evento, diferente de bienais anteriores marcadas por publicidade maciça e pela ambição de um público massivo, mesmo que se tornassem espaços repetitivos e anódinos.

Existe uma complexidade nas instituições e não é nossa intenção achatar essa condição ou ignorá-la. O episódio da pichação é um dos sintomas desta complexidade. As ações colaborativas celebradas ao longo deste texto também compreendem uma série de problemas e contradições. As discussões deste coletivo permanecem inconclusas. A nós, cabe questionar quais as possibilidades futuras da Bienal de São Paulo de criar espaços de reflexão crítica e experiência sensível por meio de projetos curatoriais não normatizadores e nem vinculados estritamente aos sistemas institucionais da arte, resultando de diálogos criativos com processos vitais e mesmo contraditórios do ambiente contemporâneo.

A Bienal parece atenta em aliar a criação artística a metodologias de pesquisa que caracterizam boa parte da arte contemporânea e a pedagogia, indicando a necessidade e possibilidade de novas estratégias.

Bienal de São Paulo de criar espaços de reflexão crítica e experiência sensível por meio de projetos curatoriais não normatizadores e nem vinculados estritamente aos sistemas institucionais da arte, resultando de diálogos criativos com processos vitais e mesmo contraditórios do ambiente contemporâneo. A demanda apontada por este coletivo, sobretudo a partir da crítica mais contundente e necessária à última Bienal e da instituição de arte no seu cruzamento com a sociedade, é claramente uma demanda afirmativa de transformação, de reinvenção, de rejeitar velhos modos de controle que enrijeceram estruturas culturais, apostando em forças e ações que produzem o  urbano e suas manifestações.

A pergunta que aqui se estabelece é como o mundo da arte pode conversar e contribuir com outros mundos. Ou, retomando o título da 27ª Bienal: como viver junto? Como disse certa vez o crítico Simon Sheikh: “a arte importa, certamente, mas não é suficiente”1.

 

 

 

 

 

NOTAS

1 Artistas, pesquisadores e ativistas brasileiros reunidos em um coletivo de trabalho em processo com o objetivo de atuar no campo do debate crítico e da produção de conhecimento sobre as relações entre arte e política em contextos específicos.

2 Incluímos aqui alguns projetos de exposições, encontros e eventos autônomos, espaços autogestionados, ações em colaboração com movimentos sociais, redes, websites e iniciativas coletivas que participamos, como Verdurada (São Paulo, desde 1996), Centro de Mídia Independente (São Paulo, desde 2000), Casa da Grazi - centro de contracultura de são paulo (2001-2007), Mídia Tática Brasil (São Paulo, 2003), CORO – Coletivos em Rede e Organizações (São Paulo, desde 2003), Espiral da Sensibilidade e do Conhecimento (São Paulo, desde 2003), Reverberações (São Paulo, desde 2004), EIA – Experiência Imersiva Ambiental (São Paulo, desde 2004), BASE móvel (Ceará e São Paulo, desde 2005), a coalizão Integração Sem Posse (São Paulo, 2005-2007) que atuou na Ocupação Prestes Maia, Arquivo de emergência (Rio de Janeiro, desde 2005), Espaço Ay Carmela! (São Paulo, desde 2008), entre outros.

3  LAGNADO, Lisette. “No amor e na adversidade”, in LAGNADO, Lisette e PEDROSA, Adriano (eds.). 27ª Bienal de São Paulo: Como Viver Junto (catálogo). São Paulo: Fundação Bienal, 2006. p. 53.

4 Este projeto foi censurado para a exposição, mas se tornou conhecido através de protestos realizados durante a mostra, da explicitação da censura na página do grupo no catálogo (um texto inteiramente coberto por tarjas pretas) e durante a fala do co-curador José Roca no seminário “Acre”.

5  Entrevista com Mônica Nador feita por André Mesquita e Gavin Adams em 20 de janeiro de 2007.

6 Ver <http://www.28bienalsaopaulo.org.br/video-lounge-inicial>.

7 Ver a clipagem do Fórum Permanente, intitulada “A recepção da 28ª Bienal de São Paulo”: <http://www.forumpermanente.org/portal/.imprensa/a-recepcao-da-28a-bienal-de-sao-paulo/>

8 Para uma reflexão mais detalhada sobre o caso, ver MESQUITA, André, MATUCK, Artur, ARENAS, Cristiane, SANDEVILLE JR., Euler, VIVACQUA, Flavia, ADAMS, Gavin, SANDER, George e PARRA, Henrique. “Caso Caroline Pivetta da Mota na 28ª Bienal de São Paulo”, dezembro de 2008. Disponível em: <http://www.canalcontemporaneo.art.br/brasa/archives/001984.html>.

9 O conceito de “instituição arte”, definido por Peter Bürger, compreende “tanto o aparelho de produção e distribuição de arte quanto às idéias dominantes em arte numa época dada e que determinam essencialmente a recepção das obras.” Ver BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Lisboa: Vega/Universidade, 1993. p. 52

10 Como a mostra Né Dans La Rue: Graffitti, realizada agora na Fundação Cartier em Paris, que escolheu o pichador Djan Ivson da Silva (Cripta) para pintar a fachada do prédio, e o livro de Francois Chastanet, Pixação: São Paulo Signature. Paris: Xg Press, 2007.

11 CALDEIRA, Teresa. “Um espaço público contestado: muros, grafites e pichações em São Paulo”, in LAGNADO, Lisette e PEDROSA, Adriano (eds.). 27ª Bienal de São Paulo: Como Viver Junto (catálogo). São Paulo: Fundação Bienal, 2006. p. 288.

12  LEFEBVRE, Henri. “Clearing the Ground”, in JOHNSTONE, Stephen (ed.). The Everyday. Cambridge: MIT Press, 2008. p. 27.

13 Esses desenhos foram publicados no Fórum Permanente junto ao texto “Um acordo de cavalheiros em vivo contato”, de Fabio Cypriano, 2008. Disponível em: <http://www.forumpermanente.org/.imprensa/a-recepcao-da-28a-bienal-de-sao-paulo/um-acordo-de-cavalheiros-em-vivo-contato>.

14 É interessante neste sentido o formato de Bienal concebido pelos curadores Victória Noorthoorn e Camilo Yáñez, selecionados através de uma chamada pública de projetos realizada pela Fundação Bienal do Mercosul, em 2009. O projeto dos curadores para esta Bienal, Grito e escuta, procura amplificar os instrumentos de contato entre o dispositivo-bienal e seu público, diversificando iniciativas: um programa pedagógico apoiado em residências artísticas e desenvolvimento de projetos de artistas; uma rádio (“Radiovisual”); uma exposição com obras realizadas no suporte WWW inscritas via convocatória internacional; uma exposição itinerante (“Projetável”); e um Programa Editorial conduzido pelos artistas. A Bienal parece atenta em aliar a criação artística a metodologias de pesquisa que caracterizam boa parte da arte contemporânea e a pedagogia, indicando a necessidade e possibilidade de novas estratégias.

15 Revista Trópico online.

16 SHEIKH, Simon. “Representation, contestation and power: the artist as public intellectual”. Disponível em <http://www.republicart.net/disc/aap/ sheikh02_en.htm>.


2009



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