Sobre o(a) militante investigador(a)

Enviado por ex0d0, sex, 2022-04-22 09:20

Buenos Aires

Sobre o Investigador Militante

Coletivo Situaciones

 

1

 

E finalmente aprendemos que o poder realmente não é o lugar político por excelência. Como dizia Spinoza, o poder é o lugar da tristeza e da impotência mais absoluta. Como chamaremos este saber sobre a emancipação que já não concebe que a mudança passe pela detenção do aparato do Estado, do poder central, mas pela destituição de todo centro?

 

Na Argentina, ressurgiu a luta popular nos últimos anos. Os piquetes e a insurreição de dezembro de 2001 aceleraram o ritmo da radicalização. O compromisso e a pergunta pelas formas concretas de intervenção se tornaram novamente cruciais. Esta contraofensiva trabalha de maneira múltipla e enfrenta não só os inimigos visíveis mas também  quem pretende formatar as experiências de contrapoder para encapsulá-las em esquemas preestabelecidos.

 

As lutas pela dignidade e pela justiça não se esgotaram: o mundo todo começa a ser questionado e reinventado novamente. É esta ativação da luta — verdadeira contraofensiva — o que encoraja a produção e a difusão das hipóteses do contrapoder.

 

Segundo James Scott, o ponto de partida da radicalidade é a resistência física, prática, social. Toda relação de poder, de subordinação, produz lugares de encontro entre dominadores e dominados. Nestes espaços de encontro, os dominados exibem um discurso público que consiste em dizer aquilo que os poderosos querem ouvir, reforçando a aparência de sua própria subordinação, enquanto que — silenciosamente — se produz, num espaço invisível ao poder, um mundo de saberes clandestinos que pertencem à experiência da micro-resistência, da insubordinação.

 

Isso ocorre permanentemente, salvo em épocas de rebelião, quando o mundo dos oprimidos sai à luz pública, surpreendendo-se a si mesmos e a estranhos.

 

Assim, o universo dos dominados existe dividido: como um servilismo ativo e uma subordinação voluntária, mas também como uma silenciosa linguagem que faz circular um conjunto de piadas, rituais e saberes que conformam os códigos da resistência.

 

Então, é esta anterioridade das resistências o que dá pertencimento à fundação da figura do Militante Investigador, cuja pretensão é desenvolver um trabalho teórico e prático orientado a coproduzir os saberes e os modos de uma sociabilidade alternativa, a partir da potência desses saberes subalternos.

 

A investigação militante não trabalha a partir de um conjunto de saberes próprios sobre o mundo, nem sobre como deveriam ser as coisas. Muito pelo contrario, a única e difícil condição do militante investigador é a de permanecer fiel a seu “não saber”. Neste sentido, é uma autêntica antipedagogia (como queria Joseph Jacotot).

 

Como veremos  na continuação, a figura do militante de investigação, então, tenta se distinguir da do investigador acadêmico, mas também do militante político, do humanitarista das ONGs, do alternativo, ou do simples bem intencionado.

 

Tão longe dos procedimentos próprios das instituições como de todo conjunto de certezas ideológicas, trata-se de melhor organizar a vida segundo um conjunto de hipóteses (práticas e teóricas) sobre as vias da (auto) emancipação. A investigação militante é também a arte de estabelecer composições que potenciem as buscas e os elementos de sociabilidade alternativa.

 

Diferentemente da investigação universitária, trata-se de trabalhar em coletivos autônomos, que não obedeçam a regras impostas pela academia, o que implica estabelecer um vínculo positivo com os saberes subalternos, dispersos e ocultos, e produzir um corpo de saberes práticos de contrapoder. Ao contrário de utilizar as experiências como campo de confirmação das hipóteses de laboratório.

 

Como se sabe, a investigação acadêmica está submetida a todo um conjunto de dispositivos alienantes que separam o investigador do sentido mesmo de sua atividade: deve-se acomodar o trabalho a determinadas regras, temas e conclusões. O financiamento, as tutorias, os requerimentos de linguagem, a papelada burocrática, os congressos vazios e o protocolo, constituem as condições em que se desenvolve a prática da investigação oficial.

 

A investigação militante distancia-se desses âmbitos (claro que sem opor-se a eles nem desconhecê-los), e tenta trabalhar sob condições alternativas, criadas pelo próprio coletivo e pelos laços de contrapoder nos quais se inscreve, procurando uma eficácia própria na produção de saberes úteis às lutas.

 

A investigação militante modifica sua posição: trata de gerar a capacidade de que as lutas leiam-se a si mesmas e, assim, retomam e difundem os avanços e as produções de outras experiências.

 

Diferentemente do militante político, para quem a política passa sempre pela política, o militante investigador é um personagem feito de interrogações, não saturado de sentidos ideológicos e de modelos sobre o mundo.

 

A investigação militante também não é uma prática de “intelectuais comprometidos” ou de um conjunto de “assessores” dos movimentos sociais. O objetivo não é politizar nem intelectualizar as experiências. Não se trata de conseguir que estas deem um salto, para passar do social à “política séria”.

 

O indício de multiplicidade é oposto a essas imagens do salto e da seriedade: não se trata de ensinar nem de difundir textos-chaves, mas de buscar nas práticas os indícios emergentes da nova sociabilidade. Se separado das práticas, a linguagem da investigação militante se reduz à difusão de um jargão, uma moda ou uma nova ideologia pseudo-universitária desprovida de ancoragem situacional.

 

Materialmente, a investigação militante se desenvolve sob as formas de oficina e de leitura coletiva, da produção das condições para o pensar e a difusão de textos produtivos, na geração de circuitos fundados em experiências concretas de luta, com o estudo e entre núcleos de militantes investigadores. No presente artigo tentaremos apresentar algumas elaborações surgidas a partir de nosso trabalho realizado na Argentina entre os anos 2000 e 2003.

 

2

 

A investigação militante, tal como a desenvolvemos, carece de objeto. Somos conscientes do caráter paradoxal deste enunciado — se se investiga, investiga-se algo; se não há algo que investigar, como falar de uma investigação? — E, ao mesmo tempo, estamos convencidos de que este caráter é o que lhe dá, precisamente, sua potência. Investigar sem objetualizar, de fato, já implica abandonar a imagem habitual do investigador. E o militante investigador aspira a isso.

 

De fato, a investigação pode ser uma via de objetualização (novamente, não é uma originalidade de nossa parte confirmar este velho saber. Não é por isso menos certo, porém, que esse efeito é um  dos limites mais sérios da subjetividade habitual do investigador). Tal como o recorda Nietzsche, o homem (e a mulher) teórico/a — que é algo mais complexo que o “homem (e a mulher) que lê” — é aquele (ou aquela) que percebe a ação desde um ponto de vista completamente exterior (quer dizer, que sua subjetividade está constituída de maneira completamente independente com respeito a essa ação). Assim, o teórico (ou a teórica) trabalha atribuindo uma intenção ao sujeito da ação. Sejamos claros: toda atribuição desse tipo supõe, com relação ao protagonista da ação observada, um autor e uma intenção; lhe confere valores e objetivos, enfim, produz “saberes” sobre a ação (e o atuante).

 

Desta maneira, a crítica fica cega em pelo menos dois momentos essenciais: por um lado por parte do sujeito  — exterior — que a exerce. O investigador não precisa se investigar. Ele pode construir saberes consistentes sobre a situação na medida em que — e, precisamente, devido a — está fora, a uma distância prudente que, supõe-se, garanta certa objetividade. E bem, essa objetividade é autentica e eficaz na mesma medida em que ela não é outra coisa que a outra cara da objetualização  — violência — da situação sobre a que se trabalha.

 

Mas ainda há outro aspecto em que a crítica fica cega: o investigador — em sua ação de atribuir — não faz mais que adequar os recursos disponíveis de sua própria situação de investigação às incógnitas que seu objeto lhe apresenta. O investigador, por essa via, constitui-se numa máquina de outorgar  — a seu objeto — sentidos, valores, interesses, filiações, causas, influências, racionalidades, intenções e motivos inconscientes.

 

Ambas as cegueiras, ou a mesma cegueira diante de dois pontos (em relação ao sujeito que atribui e em relação aos recursos da atribuição), confluem na configuração de uma única operação: uma máquina de julgar o bem e o mal de acordo com o conjunto de valores disponíveis.

 

Esta modalidade de produção de conhecimentos nos põe diante de um dilema evidente. A investigação universitária tradicional — com seu objeto, seu método de atribuição e suas conclusões — obtém, claro, conhecimentos de valor — sobre tudo descritivos — em relação aos objetos que investiga. Mas esta operação descritiva não é de nenhum modo posterior à conformação do objeto, senão que ela mesma resulta ser produtora de tal objetualização. A tal ponto que a investigação universitária será mais eficaz quanto melhor empregar estes poderes objetualizantes. Desta forma  — a ciência, e em especial aquela chamada social — opera mais como separadora — e coisificadora — das situações nas que participa que como elemento interior da criação de eventuais experiências (práticas e teóricas).

 

O investigador (ou a investigadora) se oferece a si mesmo como sujeito de sínteses da experiência. Ele é quem explica a racionalidade do que acontece. E, como tal, fica preservado: como necessário ponto cego de dita síntese. Ele mesmo, como sujeito que dá sentido, fica excetuado de todo autoexame. Ele e seus recursos — seus valores, suas noções, seu olhar — constituem-se na máquina que classifica, torna coerente, inscreve, julga, descarta e excomunga. Enfim, o intelectual é quem “faz justiça” em respeito aos assuntos da verdade, como administração —adequação — do que existe em relação aos horizontes de racionalidade do presente.

 

3

 

Então, falamos do compromisso e da militância.  Por acaso estamos propondo a superioridade do militante político em relação ao investigador universitário?

 

Não acreditamos. A militância política é também uma prática com objeto. Como tal, ficou ligada a uma modalidade da instrumentalidade: aquela que se vincula com outras experiências com uma subjetividade sempre já constituída, com saberes prévios — os saberes da estratégia — , fornecidos de enunciados de validez universal, puramente ideológicos. Sua forma de ser com os outros é o utilitarismo: nunca há afinidade, sempre há “acordo”. Nunca há encontro, sempre há “tática”. Definitivamente: a militância política — sobretudo a partidária — dificilmente pode se constituir numa experiência de autenticidade. Já desde o começo fica presa na transitividade: o que lhe interessa de uma experiência é sempre “outra coisa” que a experiência em si mesma. Desde este ponto de vista, a militância política  — e não estamos excetuando as militâncias de esquerda — é tão exterior, julgadora e objetualizante como a investigação universitária.

 

Agreguemos o fato que o militante humanitário  — digamos, o das ONG’s — também não escapa a esses mecanismos manipuladores. Estritamente falando, a ideologia humanitarista  — agora globalizada — se constitui a partir de uma imagem idealizada de um mundo já feito, imodificável, frente ao qual só resta dedicar esforços a aqueles lugares  — mais ou menos excepcionais — nos quais ainda reina a miséria e a irracionalidade.

 

Os mecanismos desatados pelo humanitarismo solidário não só dão por encerrada toda criação possível mas, também, naturalizam  — com seus misericordiosos recursos da beneficência e sua linguagem sobre a exclusão —  a objetualidade vitimizante que separa a cada qual de suas possibilidades subjetivantes e produtivas.

 

Se nos referimos ao compromisso e ao caráter “militante” da investigação, nós o fazemos num sentido preciso, ligado a quatro condições: (a) o caráter da motivação que sustenta a investigação; (b) o caráter prático da investigação (elaboração de hipóteses práticas situadas); (c) o valor do investigado: o produto da investigação só se dimensiona em sua totalidade em situações que compartem tanto a problemática investigada como a constelação de condições e preocupações; e (d) seu procedimento efetivo: seu desenvolvimento é já resultado, e seu resultado redunda numa imediata intensificação dos procedimentos efetivos.

 

4

 

De fato, toda idealização reforça esse mecanismo da objetualização. Esse é um autêntico problema para a militância de investigação.

 

A idealização — mesmo quando ela recaia sobre um objeto não consagrado a tais efeitos — resulta sempre do mecanismo da atribuição (inclusive se esta não acontece como a modalidade das pretensões científicas ou políticas). Porque a idealização  — como toda ideologização — expulsa da imagem construída tudo aquilo que pudesse fazê-la cair como ideal de coerência e plenitude.

 

Acontece, porém, que todo ideal  — ao contrário do que crê o idealista — está mais do lado da morte que da vida. O ideal amputa realidade à vida. O concreto  — o vivo — é parcial e irremediavelmente inapreensível, incoerente e contraditório. O vivo  — na medida em que persista em suas capacidades e potências — não precisa se ajustar a imagem alguma que lhe outorgue sentido ou que o justifique. É o contrário: é em si mesmo fonte criadora  — não objeto ou depositário — de valores de justiça. De fato, toda ideia de um sujeito puro ou pleno não é mais que a conservação deste ideal.

 

A idealização oculta uma operação inadvertidamente conservadora: por meio da pureza e da vocação de justiça que parece dar-lhe origem se esconde  — novamente —  o enraizamento dos valores dominantes. Desde aí a aparência justiceira do idealista: quer fazer justiça, quer dizer, deseja materializar, efetivar, os valores que tem por bons. O idealista não faz senão projetar esses valores sobre o idealizado (momento no qual aquilo que era múltiplo e complexo se torna objeto, de um ideal) sem chegar a se interrogar a si mesmo sobre seus próprios valores; quer dizer, sem realizar uma experiência subjetiva que o transforme.

 

Esse mecanismo termina por revelar-se como o mais sério dos obstáculos do militante investigador: ao originar-se em formas sutis e quase imperceptíveis, a idealização vai produzindo uma distância insalvável. Ao ponto que o militante investigador não alcança ver senão somente o que projetou no que lhe aparece já como uma plenitude.

 

Daí que essa atividade não possa existir senão a partir de um trabalho muito sério sobre o coletivo mesmo de investigação; quer dizer, não pode existir sem investigar-se seriamente a si mesmo, sem modificar-se, sem reconfigurar-se nas experiências das que toma parte, sem revisar os ideais e os valores que sustenta, sem criticar permanentemente suas ideias e leituras, enfim, sem desenvolver práticas em relação a todas as direções possíveis.

 

Esta dimensão ética remete à complexidade mesma da investigação militante: o trabalho subjetivizante de desconstruir toda inclinação objetualizante. Em outras palavras: de realizar uma investigação sem objeto.

 

Como na genealogia, trata-se de trabalhar no nível da “crítica dos valores”. De penetrá-los e destruir “suas estátuas”, como afirma Nietzsche. Mas este trabalho, que está orientado por e em direção à  criação de valores, não se faz na mera “contemplação”. Requer da crítica radical os valores em curso. Daí que implique um esforço de desconstrução das formas dominantes da percepção (interpretação, valoração). Não há, portanto, criação de valores sem produção de uma subjetividade capaz de se submeter a uma critica radical.

 

5

 

Uma pergunta faz-se evidente: é possível fazer uma pesquisa sem, ao mesmo tempo, desencadear um processo de paixão? Como seria possível o vínculo entre duas experiências sem um forte sentimento de amor ou de amizade?

 

Efetivamente, a experiência da militância de investigação se parece à do apaixonado, à condição de que entendamos por amor, o que certa larga tradição filosófica  — materialista — entende por tal: quer dizer, não algo que acontece a si com respeito a outros, mas um processo que, como tal, toma a dois ou mais. O que converte o “próprio” em “comum”. Um amor do qual se participa. Um processo tal não se decide intelectualmente: toma a existência de dois ou mais. Não se trata de nenhuma ilusão, mas de uma experiência autêntica de antiutilitarismo.

 

No amor, na amizade, ao contrário do que ocorre nos mecanismos que estivemos descrevendo até agora, não há objetualização nem instrumentalismo. Ninguém se preserva do que pode o vínculo, nem se sai daí não contaminado. Não se experimenta o amor nem a amizade de maneira inocente: todos saímos reconstituídos deles. Estas potências — o amor e a amizade — tem o poder de constituir, qualificar e refazer os sujeitos que aprisiona.

 

Este amor  — ou amizade — se constitui como uma relação que indefine o que até o momento se preservava como individualidade, compondo uma figura integrada por mais de um corpo individual. E, por sua vez, tal qualificação dos corpos individuais que participam desta relação faz fracassar todos os mecanismos de abstração — dispositivos que fazem dos corpos quantificados objetos intercambiáveis —, tão próprios do mercado capitalista como dos demais mecanismos objetualizantes nomeados.

 

Portanto, consideremos este amor como uma condição da investigação militante.

 

Então, ao longo deste livro referimos várias vezes a este processo de amizade ou paixão, sob o nome — menos comprometedor — de composição. Diferente da articulação, a composição não é meramente intelectual. Não se baseia em interesses nem em critérios de conveniência (nem políticos nem de outra ordem). Ao contrário dos “acordos” e das “alianças” (estratégicos ou táticos, parciais ou totais) fundados em coincidências textuais, a composição é mais ou menos inexplicável, e vai mais além de tudo o que se pode dizer dela. De fato — ao menos enquanto dura —, é muito mais intensa que qualquer compromisso meramente político ou ideológico.

 

O amor e a amizade nos falam do valor da qualidade sobre a quantidade: o corpo coletivo composto de outros corpos não aumenta sua potência de acordo com a  mera quantidade de seus componentes individuais, mas em relação à intensidade do laço que os une.

 

6

 

Amor e amizade, então: o trabalho de militância de investigação não se identifica com a produção de uma linha política. Trabalha —necessariamente — em outro plano.

 

Se sustentamos a distinção entre “a política” (entendida como luta pelo poder) e as experiências nas quais entram em jogo processos de produção de sociabilidade ou de valores, podemos então distinguir o militante político (que funda seu discurso em algum conjunto de certezas), do militante investigador (que organiza sua perspectiva a partir de perguntas críticas em relação a essas certezas).

 

Porém, é essa distinção que frequentemente perde-se de vista, quando se apresenta uma experiência como modelo, tornando-a simplesmente fonte de uma linha política.

 

Em certa medida, então, acreditou-se ver o nascimento de uma linha “situacionista”, como o produto idealizado da linguagem — ou melhor, o jargão — da publicação e a imagem que — aparentemente — o caderno transmite — ao menos em alguns leitores —  da experiência.

 

Difamadores e defensores desta nova linha fizeram dela motivo de disputas e de conjuras. Não podemos, com respeito a isso, mais que admitir que, de todos os destinos possíveis deste encontro, estas reações são as que menos nos motivam, tanto pela improdutividade revelada que resulta de tais repúdios e adesões, como pela forma em que essas ditas idealizações (igualmente positivas ou negativas) acabam substituindo um olhar mais crítico sobre os que as realizam. Assim, adota-se rapidamente uma posição demasiado acabada diante do que pretende ser um exercício de abertura.

 

7

 

Demos um passo a mais na construção do conceito de uma investigação sem objeto. Interioridade e imanência não são necessariamente processos idênticos.

 

Dentro e fora, inclusão e exclusão, são (se nos permite tal expressão) categorias da ideologia dominante: geralmente ocultam muito mais do que revelam. Isto é: a experiência do militante de investigação não é a de estar dentro, mas a de trabalhar em imanência.

 

Digamos que a diferença pode ser apresentada nos seguintes termos: o dentro (e portanto o fora) define uma posição organizada a partir de um certo limite ao que consideramos relevante.

 

Dentro e fora remetem à localização em relação a um corpo ou elemento em relação a uma disjuntiva ou uma fronteira. Estar dentro é também — nesta linha — compartilhar uma propriedade comum, que nos faz pertencer a um mesmo conjunto.

 

Este sistema de referências nos interroga pelo lugar onde estamos situados: nacionalidade, classe social, ou melhor, sobre o lugar no qual elegemos situar-nos diante das próximas eleições, a invasão militar à Colômbia ou a programação dos canais a cabo.

 

No extremo, o pertencimento “objetiva” (aquela que deriva da observação de uma propriedade comum) e “subjetiva” (aquela que deriva de uma eleição diante de) se unem para a alegria das ciências sociais: se somos trabalhadores desocupados, podemos optar por ingressar a algum movimento piqueteiro; se somos da classe média, podemos optar por ser parte de alguma assembléia de vizinhos. Sobre a determinação — pertencimento comum a um mesmo conjunto —, neste caso a classe social, se faz possível — e desejável — a eleição (o grupo de comuns com quem nos agruparemos).

 

Em ambos casos, o estar dentro implica respeitar um limite preexistente que distribui de maneira mais ou menos involuntária lugares e pertencimentos. Não se trata de desconhecer as possibilidades que derivam do momento da eleição — que podem ser, como no caso deste exemplo, altamente subjetivante — no momento de distinguir o mero “estar” e seu “dentro” (ou “fora”, tanto faz) dos mecanismos de produção subjetiva que surgem a partir de desobedecer estas/estes destinos até que, no limite, já não se trata de reagir diante das opções já codificadas mas de produzir pessoalmente os termos da situação.

 

Neste sentido vale a pena apresentar a imagem da imanência como outra coisa que o mero estar dentro.

 

A imanência refere-se a uma modalidade de habitar a situação e trabalha a partir da composição — o amor ou a amizade — para dar lugar a novos possíveis materiais de dita situação. A imanência é, pois, um co-pertencimento constituinte que atravessa transversal ou diagonalmente as representações do “dentro” e do “fora”. Como tal não se deriva do estar, mas requer uma operação do habitar, do compor.

 

Resumindo: imanência, situação, composição, são noções internas à experiência da militância de investigação. Nomes úteis para as operações que organizam um futuro comum e, sobretudo, constituinte. Se em outra experiência tornam-se jargões de uma nova linha política ou categorias de uma filosofia de moda — assunto que não nos interessa em nada — obterão, seguramente, um novo significado a partir desses usos que não são os nossos.

 

Em outras palavras: a diferença operativa entre o “dentro” da representação (fundamento do pertencimento e da identidade) e a conexão de imanência (o devir constituinte) passa pela maior disponibilidade que esta última forma nos conceda para participar de novas experiências.

 

8

 

Parece que chegamos a produzir uma diferença entre o amor-amizade e as formas de objetivação contra as que pretende aumentar a figura  — precária, insistimos — do militante investigador.

 

No entanto ingressamos no assunto — fundamental — da ideologização do enfrentamento.

 

A luta ativa capacidades, recursos, ideais e solidariedades. Como tal nos fala de uma disposição vital, de dignidade. Nela, o risco da morte não é buscado nem desejado. Por isso que o sentido dos companheiros mortos não nunca é pleno, mas doloroso. Este drama da luta é, entretanto, banalizado quando se ideologiza o enfrentamento, até postulá-lo como sentido excludente.

 

Quando isto acontece não há lugar para a investigação. Como se sabe, ambas — ideologia e investigação — tem estruturas opostas: enquanto a primeira se constitui a partir de um conjunto de certezas, a segunda só existe a partir de uma gramática das perguntas.

 

Porém, a luta  — a luta necessária, nobre — não leva sozinha à exaltação do enfrentamento como sentido dominante da vida. Sem dúvidas que o limite possa parecer algo débil no caso de uma organização em luta permanente como uma organização piqueteira e, apesar disso, dar por garantido este ponto seria prejulgá-lo.

 

Diferentemente da subjetividade militante que costuma sustentar-se num sentido dado pela polarização extrema da vida  — a ideologização do enfrentamento —, as experiências que buscam construir outra sociabilidade procuram ativamente não cair na lógica do enfrentamento, segundo a qual a multiplicidade da experiência se reduz a este significante dominante.

 

Então, o enfrentamento, por si mesmo, não cria valores. Como tal, não vai mais além da distribuição dos valores dominantes.

 

O resultado de uma guerra nos indica quem se apropriará do existente. Quem terá o direito de propriedade dos bens e valores existentes.

 

Se a luta não altera a “estrutura de sentidos e valores”, só se assiste a uma transformação de papéis, o que é toda uma garantia de sobrevivência para a estrutura mesma.

 

Neste ponto se desenham diante de nós duas imagens completamente diferentes da justiça — porque definitivamente trata-se disto. De um lado, a via da luta pela capacidade de exercer a máquina de julgar. Fazer justiça é atribuir-se para si o que se considera justo. É interpretar de outro modo a distribuição dos valores existentes. A outra sugere que aquilo do que se trata é o tornar-se criador de valores, de experiências, de mundo.

 

Por isso que toda luta — que não seja idealizada — tenha essa dupla direção que parte da autoafirmação: para “dentro” e para “fora”.

 

9

 

A investigação militante não busca uma experiência-modelo. Ao contrário, afirma-se contra a existência de tais ideais. Será dito — e com razão — que uma coisa é declamar este princípio e outra muito diferente é alcançá-lo praticamente. Será possível concluir também — e aqui começam nossas dúvidas — que para que este nobre propósito seja realidade faria falta fazer as “nossas críticas” explícitas. Por isso, se se observasse bem a demanda, ver-se-ia até que ponto o que nos estaria sendo pedido seria guardar o modelo — agora de maneira negativa — para comparar a experiência real ao modelo ideal, mecanismo que utilizam as ciências sociais para extrair seus “juízos críticos”.

 

Como se vê, todas estas reflexões sobre a crítica e a produção de conhecimentos não são assuntos menores, e não o são porque dizem respeito a formas de justiça (e o juízo não é outra coisa que a forma judicial da justiça). Este artigo não pode oferecer nada parecido a um fato jurídico, nem prover recursos para fazer juízos com outras experiências. Muito pelo contrário: se algo pretendemos, os seus autores  — cadáveres que, falando, escrevem — foi oferecer uma imagem diametralmente oposta à da justiça, fundada na composição. Para que serve isto? Não há respostas prévias.

 

Setembro de 2003

 

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Este artigo está composto por recortes de dois escritos distintos nos quais, com diferença de um ano entre um e outro, nos ocupamos da investigação militante. De um lado, se reproduzem partes de Por una política más allá de la política, ensaio publicado no livro Contrapoder, una introducción, Buenos Aires, Edições de mão a mão, outubro de 2001. Por outra parte, reúne boa parte do texto Sobre el método, que serve de prólogo ao livro La Hipótesis 891. Más allá de los piquetes, escrito pelo nosso Coletivo em coautoria com o Movimiento de Trabajadores Desocupados de Solano, Buenos Aires, Edições de mão a mão, outubro de 2002.

 

 

www.situaciones.org  - colectivo@situaciones.org

 

Este texto foi traduzido por Milla Jung com a permissão dos autores como encarte para a tese Arte Ocupação, práticas artísticas e a  invenção de modos de organização.


2004



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