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desarquivo.org

Texto

As pessoas ainda pedem definições, mas agora é tranquilo que nada pode ser definido: o Grupo C.D.M.

Enviado por aarquivista, seg, 2020-11-16 10:51


CDM

Pelotas

Em julho de 2003, alguns meses após a conclusão do curso de Artes Visuais (com habilitação em Design Gráfico) na Universidade Federal de Pelotas, Leonardo Furtado e Ricardo Mello se propuseram a alugar um espaço para que pudessem desenvolver seus trabalhos individuais no campo da pintura e do desenho. Tal espaço acabou se concretizando na forma de uma garagem, um espaço físico usado primeiramente como um local para a produção individual dos mesmos e, posteriormente, para reuniões que dariam origem às futuras interferências urbanas do grupo que viria a se constituir pelo nome de Grupo C.D.M.

Ao final do mesmo ano, já havia sido enumerada uma série de características do que foi por eles chamado de “pseudoartista”, isto é, um personagem (cujos aspectos peculiares são expressos por um irreverente manifesto) criado pelos fundadores do grupo. O pseudoartista seria, na concepção do grupo, um indivíduo que mesmo tendo uma produção, um pensamento, e um foco, definidos na sua obra, questiona paulatinamente o seu “status” como artista. Ou seja, o pseudoartista questiona a sua visualidade real e existência social, o seu papel frente às instituições de arte e às mídias de massa; e a validade de seu percurso e obra inseridos nesse cenário de preceitos diversos e divergentes que caracterizam a arte contemporânea.

Em torno da mesma época, o ateliê-garagem foi ironicamente denominado como Centro de Desintoxicação Midiática, sendo mais tarde também chamado por sua abreviação. A partir daí, ficou então definido o C.D.M. como um grupo que desenvolve um trabalho de caráter experimental ao não aceitar o senso comum e as imposições mercadológicas dos meios visuais com que trabalha. Indivíduos interessados em discussões acerca da arte contemporânea, publicidade, design e questões sociais e os pontos para os quais essas diferentes áreas convergem. A partir dessas discussões, o grupo propõe e realiza “Re-Ações Públicas” sistemáticas.

As Re-Ações Públicas são colagens e interferências urbanas que utilizam meios gráficos, sonoros e eletrônicos, e agregam conceitos da criação poética de cada um dos membros. Trata-se de trabalhos que se inserem diretamente no tecido urbano e que rompem, assim, quaisquer relações com os espaços institucionalizados e convencionais de exposição de arte, abstendo-se da dependência do circuito artístico, com tudo que isso implica – positiva e negativamente – em relação às percepções específicas desses trabalhos e suas possíveis leituras.

Através de suas Re-Ações Públicas, o coletivo C.D.M. tem a intenção de causar um estranhamento, atiçar a curiosidade e instaurar intervenções gráficas ou sonoras que divergem do cotidiano habitual dos transeuntes urbanos, frequentemente imersos nos seus afazeres diários e anestesiados na rotina impositiva da mídia e da visualidade urbana (outdoors, campanhas publicitárias e políticas, displays eletrônicos). Pois em um mundo que se organiza cada vez mais em sintonia e dependência com a difusão e a produção de imagens e informações, as imagens da mídia acabam por definir toda uma realidade coletiva. Nesse sentido, os trabalhos também procuram instituir um vazio comunicacional crítico em meio à poluição visual urbana, amplificando dessa forma o seu caráter inusitado e questionador, além de se colocarem como uma alternativa ao escasso circuito de arte contemporânea de Pelotas e de outras cidades do Rio Grande do Sul, que sofrem com a falta de espaços dedicados a esse tipo de manifestações.

Frente a este cenário restrito e fechado, instaurado de maneira geral também por todo o país, o número crescente de coletivos de artistas apenas demonstra o quanto a união entre artistas se coloca como necessária. E, nesse sentido, o C.D.M. acredita que a sincronicidade funciona. Numa multiplicidade de expressões, que apresenta uma diversidade de técnicas e talentos, mesmo que o processo de trabalho e linha de pensamento de cada um de seus membros tenha direcionamentos por diversas vezes distintos, esse processo de produção e discussões forma uma soma muito peculiar que resulta na produção poética visual específica e particular do grupo.

Assim, os integrantes do C.D.M. procuram, através de discussões e planejamentos, encontrar estratégias autônomas para inserir-se no circuito da arte contemporânea. A princípio lançando mão de meios alternativos, mas sem ignorar a importância de salões, museus e galerias. O coletivo não pretende necessariamente ir contra as instituições, mas sim – justamente por se dar conta da importância conceitual desses espaços é que – procura aceitação por parte dos mesmos para posteriormente subverter suas lógicas rotineiras de instauração social.

Fazer o que se convencionou chamar de “arte ativista” (ou “artivismo”) se revelou uma polêmica nos debates sobre coletivos de artistas. Porém o Centro de Desintoxicação Midiática não considera que suas ações possuam um cunho "ativista". Na verdade, o grupo questiona inclusive a existência desse aspecto nessas ações. Uma vez que, quanto à existência de um provável fundo social ou político, é impossível saber de fato. Pode-se afirmar apenas que as Re-Ações Públicas do C.D.M. têm como intenção principal fazer com que as pessoas se questionem a respeito de hábitos e noções socialmente instauradas e pré-determinadas, como, por exemplo, a suposta veracidade daquilo que é divulgado pela mídia.

No caso da Re-Ação Pública sonora, o Grupo C.D.M. contrata os serviços de uma publicicleta, propaganda sonora em bicicleta comumente usada na cidade de Pelotas e em outras cidades pelo país, para veicular durante o período de uma hora, em um trajeto estipulado previamente pelo grupo, o Manifesto do Pseudoartista e frases dos diários do artista/músico/compositor americano John Cage,2 além de algumas vinhetas com frases de efeito criadas pelo coletivo (por exemplo: “diga aos outros, sempre que puder, como eles devem ser; do contrário, eles acabarão sendo si mesmos"; ou “não ao monopólio visual corporativista”). A locução é feita por um profissional, em um estilo que recorda as antigas rádios AM. São adicionadas, na edição do áudio, músicas populares como fundo sonoro. Dessa maneira, o resultado final acaba ficando “camuflado” em meio à poluição sonora das áreas centrais da cidade.

1. Texto originalmente publicado na revista Panorama Crítico, edição nº10 (mar. 2011): http://bit.ly/29j5Vg7

2  CAGE, JOHN. John Cage: De segunda a um ano. Introdução e revisão da tradução de Rogério Duprat, São Paulo: Hucitec, 1985.

BLOCH, Ernst. Prefácio. In: ______. O Princípio Esperança – Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2005, p. 13-28.

PEIXOTO, Nelson Brissac. O olhar do estrangeiro. In: NOVAES, Adauto (Org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.


2016



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