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Pensar: a que será que se destina? Diferentes tempos de uma reflexão sobre a morte anunciada do educador

Enviado por aarquivista, sab, 2019-09-14 20:21

Porto Alegre

Psicologia & Sociedade

On-line version ISSN 1807-0310

Psicol. Soc. vol.16 no.1 Porto Alegre  2004

http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822004000100005 

Pensar: a que será que se destina? Diferentes tempos de uma reflexão sobre a morte anunciada do educador

 

Thinking: what is it destined for? Differenent times of a reflection upon the announced death of educators

 

 

Esther Maria de Magalhães ArantesI; Lília Ferreira LoboII; Tânia M. Galli FonsecaIII

IPontifícia Universidade do Rio de Janeiro e Universidade Estadual do Rio de Janeiro
IIUniversidade Federal Fluminense
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

 

 


RESUMO

O artigo problematiza os atuais critérios de avaliação da Pós-Graduação, cuja ênfase na publicação de artigos em revistas indexadas, tem levado à desvalorização do educador. Ao não valorizar outras atividades como ensino, orientação, organização de eventos, participação em debates, trabalhos de extensão, participação em bancas, assessorias etc., e ao não considerar relevante as publicações que se dirigem a um público mais amplo, ou mesmo as publicações de livros, tende a definir de maneira bastante limitada o que seja produtividade acadêmica.

Palavras-chave: avaliação, ensino, produtividade acadêmica.

 


ABSTRACT

The article questions the current Post-Graduation evaluation criteria, which emphasizes article publications and indexed magazines. It has led to a depreciation of the educator. When not valuing other activities such as teaching, orientation, organization of events, participation in debates, extension works, participation in examining boards etc, and when not considering important the publications towards a larger public, or even book publications, Post-Graduation evaluation tends to define, in a limited way, what is academic productivity.

Keywords: evaluation, teaching, academic productivity.


 

 

Uma história de liberdade nos espera? Não, uma história e libertação, esta sim nos espera: desutopia em ato, incontrolável, tão dolorosa quanto construtiva (...). A constituição da potência é a própria saga da libertação (...). Cabe a nós acelerar esta potência e no amor ao tempo, interpretar a sua necessidade. (Toni Negri)

 

SOBRE A CRISE DA MODERNIDADE1

Dizemos, atualmente, que estamos em crise: ética, civilizatória, paradigmática; ou que a modernidade estaria encerrando o seu ciclo e o homem caminhando para um futuro glorioso ou, quem sabe, para a derrocada final.

Algumas das características desta crise tem sido o predomínio dos processos de exclusão sobre os de inclusão, do capital sobre o trabalho, do mercado sobre a democracia, da propriedade sobre os direitos sociais, resultando no que Boaventura de Souza Santos (1998) caracteriza como fascismo societal.

Sem adentrarmos nas questões propriamente filosóficas e científicas constitutivas desta modernidade, podemos, no entanto, genericamente, dizer que uma das características desta modernidade foi ter optado por um certo tipo de razão ou conhecimento científico, de natureza operante ou instrumental, capaz de dominar e modificar o meio físico e na atualidade, a vida, através das biotecnologias.

Nada mal, talvez, se esse tipo de racionalidade tivesse se limitado apenas a certos usos e a certos propósitos e não tivesse a pretensão de se constituir como único modo legítimo e verdadeiro de leitura do mundo.

(...) quando o Ocidente, através de Descartes e de Bacon, fez a escolha por uma forma de cientificidade e deixou de lado tudo o que fosse dotado de alguma ambivalência, deixou de ladotambém as chamadas idéias obscuras..Com isto, também deixou de lado o que na condição humana é ligada ao corpo, ao tempo, à história e à concretude. (PESSANHA, 1993: 26)

Não se trata aqui, e de acordo com José Américo Pessanha, de negar validade ao modelo das ciências da natureza ou à matemática, mas apenas de reconhecer que as ciências humanas e sociais não podem se reduzir ao discurso coagente da razão abstrata, pretendendo a construção de verdades a-históricas e universais. Quanto mais a razão se fecha em um modelo único e absoluto, maior o empobrecimento do pensamento, a domesticação da vida e a intolerância à diferença. Trata-se, portanto,

(...) é de negar a matematização daquilo que não é matematizável, de negar a desumanização daquilo que precisa se manter humanizado, negar a extração da dimensão temporal daquilo que só pode ser compreendido temporalmente. Trata-se, portanto, de preservar a temporalidade do tempo, a humanidade do homem, a concretude do concreto, coisas óbvias (Idem: 31).

Diante dessas poucas ponderações, mas, esperamos, suficientes para os nossos propósitos, uma pergunta se impõe: se de há muito sabemos disto, se somos há tanto tempo capazes dessa crítica, porque este modelo é vitorioso?

Embora o pensamento de Karl Marx seja atualmente pouco lembrado – quem sabe na tentativa de nos convencer de que o capitalismo é a verdadeira natureza das sociedades – não podemos problematizar essa racionalidade científica sem mencionarmos que ela se encontra, mais do que nunca, articulada ao capital. Assim, esta modernidade da qual falamos, não é outra, senão ocidental e capitalista.

Carlos Henrique Escobar nos lembra que não se trata, em Marx, apenas da questão do roubo do sobretrabalho, mas também, fundamentalmente, do fetiche da mercadoria. Neste sentido, não é suficiente a luta contra a exploração do trabalho, mas é necessário ir além e criticar a sociedade fundada no entusiasmo e no maravilhamento da mercadoria, da acumulação, do dinheiro. É preciso que as pessoas possam se reencontrar, ou se constituir, de uma outra forma: fora dos valores do capital.

Escobar nos ensina que o capital tem apenas visão de meios: a vida é apenas meio de acumulação e riqueza, e de ampliação de poder. A razão também não tem sido uma tática de aproximação das questões, mas instrumento: produz e faz a guerra. Por isso é que o mundo em que vivemos tem sido também, ao lado de um fantástico desenvolvimento tecnológico, a história da depredação da terra e da humilhação da vida.

O capital inventou um mundo, inventou o homem, inventou esta roupa, esta cara, as línguas nacionais. É dele tudo isto, mesmo que alguém do povo o auxilie, como, por exemplo, na organização do trabalho. Mas o capital produziu tudo isto em função da intensificação da produção e da capacitação para a guerra. Só que agora o capital chegou a uma espécie de meio pleno, que é a cibernética, a automação, o robô, a clonagem. Com isto ele dispensa a vida: são as massa excluídas... O capital não faz mais a guerra com soldados; quem fizer a guerra com soldados perde... quem produzir mercadoria com trabalhadores perde no mercado também: ela não é competitiva. Ao excluir a vida, o capital vai suspender tudo o que ele fez. (ESCOBAR, 2000)

Neste sentido, no capitalismo globalizado de hoje, a crise pode ser definida como sendo o desmonte dos valores, das temáticas e dos corpos da modernidade.

O capital está desfazendo a cidade, a mulher-mãe, a família triangular, o dispositivo criança, o trabalhador... Ele não precisa mais destes corpos e destas identidades... estamos muito soltos... uma espécie de nomadismo interior e exterior. Esta globalização desengajou o social. Ela não precisa mais do social, dos lugares, das cidades e das marcas. A Terra, agora, é controlada por satélites. A informação, os mídias, a OTAN, a dívida externa... tudo isto é fixo e parado: imobiliza as ações aqui em baixo... A História não era aquilo que a esquerda falava: o sentido das coisas e tal. Era, na verdade, a memória do capital. (Idem)

Escobar acredita que as alternativas aos valores do capital não têm sido apresentadas e por isto não vislumbra, no momento atual, como abandonarmos os lugares onde existam lutas - ainda que feitas em termos de contradições, paradoxos e oposições.

Neste sentido, Moacir Gadotti (1980), ao falar do papel do educador, lembra que uma mudança na educação não se fará espontaneamente, nem de um momento para o outro, por isto advoga uma "pedagogia do conflito" ou uma "educação contra a educação", capaz de mantê-la permanentemente em questão. Este estado de permanente "tensão" ou "conflito" não resolve as questões colocadas por Escobar, que não se limitam ao aparelho escolar e universitário, mas evita que a educação seja reduzida a um mero "aparelho ideológico" (no sentido das teorias da reprodução vigentes na década de 1970), e que possa estimular, mais do que limitar, o pensamento crítico e criativo.

 

SOBRE A CIENTIFICIDADE DA PSICOLOGIA2

Talvez a crítica mais contundente dirigida à psicologia tenha sido a formulada por Georges Canguilhem, numa conferência realizada no Collège Philosophique, em 18 de dezembro de 1956. À pergunta inicial "O que é a psicologia?" segue-se "Onde querem chegar os psicólogos fazendo o que fazem?", numa apreciação crítica tanto da pretensão de cientificidade da psicologia como do próprio fazer do psicólogo. Este buscaria, "numa eficácia discutível", a sua "importância de especialista". No entanto, e aí está o que de fato deve nos preocupar na argumentação de Canguilhem, esta eficacidade, mesmo que mal fundada, não é ilusória.

De fato, de muitos trabalhos de psicologia, se tem a impressão de que misturam, a uma filosofia sem rigor uma ética sem exigências e uma medicina sem controle. (CANGUILHEM, 1972: 105)

O objetivo de Canguilhem, nesta conferência, foi o de criticar o programa universitário de seu colega de École Normal Supérieure, Daniel Lagache (1947), que postulava a unificação dos diferentes ramos da psicologia, afirmando haver convergência entre a psicologia experimental, dita naturalista e a psicologia clínica, dita humanista.

Continuando suas críticas à psicologia, Canguilhem, que aceitou ser o relator de "Historie de la folie", tese de doutorado defendida por Michel Foucault em 1961, não poupou Lagache, que também fazia parte da banca examinadora da tese, mostrando que a pesquisa desenvolvida por Foucault fazia desmoronar o projeto de unidade da psicologia. Apesar das críticas de Canguilhem e de outros autores, entre os quais Jacques Lacan, a proposta de Lagache teve ampla repercussão na França do pós-guerra.

Novamente, em dezembro de 1980, numa conferência intitulada "Le cerveau et la pensée" (1992), Canguilhem voltou a criticar a psicologia, desta vez por reduzir o pensamento ao funcionamento cerebral. Afirmando que a filosofia nada tinha a esperar dos serviços da psicologia, comparou-a a uma verdadeira "barbárie".

Sem se preocupar com as brigas entre behavioristas e cognitivistas, entre neurobiologistas e fisicalistas, Canguilhem combateu em bloco, nessa conferência, não as ciências e seus avanços, não os trabalhos modernos sobre os neurônios, os genes ou a atividade cerebral, mas uma abordagem eclética na qual se misturavam o comportamentalismo, o experimentalismo, a ciência da cognição, a inteligência artificial etc. Em suma, a seu ver, essa psicologia que pretendia extrair seus modelos da ciência não passava de um instrumento de poder, de uma biotecnologia do comportamento humano, que despojava o homem de sua subjetividade e procurava roubar-lhe a liberdade de pensar. (ROUDINESCO, 2000: 57-58)

Mesmo se perguntando se não haveria por parte de Canguilhem uma certa obstinação em demolir os alicerces da psicologia, Roudinesco presta uma homenagem a "um dos maiores filósofos do nosso tempo", reconhecendo a pertinência e a atualidade de suas críticas, principalmente porque, segundo a autora, uma aliança entre a tecnologia, a ciência da mente e o organicismo biológico e genético, vem ganhando terreno

(...) até o ponto de fazer emergir uma nova ilusão cientificista segundo a qual a intervenção cada vez mais ativa da ciência no cérebro humano permitirá conduzir o homem à imortalidade, ou seja, à cura da condição humana. (ROUDINESCO, 1993: 144)

Entre nós, o debate sobre a cientificidade da Psicologia teve importante repercussão, ensejando, entre outros, o belo artigo de Luiz Alfredo Garcia Rosa intitulado "Psicologia, um espaço de dispersão do saber", publicado pela Rádice - Revista de Psicologia (ano 1, nº 4). Embora não pretendendo ser polêmico, no sentido de demonstrar ou não a cientificidade da psicologia, o artigo afirma a inexistência de coerência interna da psicologia, merecendo uma réplica de Gregório Baremblitt, intitulada "As psicologias, a ciência e a travessa resignação", também publicado pela Rádice (ano 2, nº 5) e outro artigo de José Nóbrega, "Ciência, critérios e obstáculos", todos do final dos anos 70, década em que esta revista se constituiu no principal veículo do movimento por uma psicologia alternativa e libertária, discutindo, sistematicamente, em plena Ditadura Militar, temas como tortura, seqüestro, drogas, racismo, manicômios judiciários, hospitais psiquiátricos, prisões, pobreza, direitos humanos, greve, sindicalismo, liberação sexual, comunidades, aborto, creche, emancipação feminina, umbanda, macumba, questão indígena, educação popular, movimento estudantil, universidade etc.

Dentre as inúmeras entrevistas publicadas pela Rádice, destacamos as de Nise da Silveira, Hélio Pellegrino, Eduardo Mascarenha, Franco Baságlia, Carl Rogers, Ronald Laing, bem como matérias de/sobre intelectuais como Jean Paul Sartre, Felix Guattari, Wilhelm Reich, Kattrin Kemper, Sérgio Arouca, além de depoimentos de prisioneiros, pacientes psiquiátricos e trabalhadores. Destacamos ainda as matérias sobre a formação e o exercício profissional do psicólogo, entre as quais a luta pelo Sindicato de Psicologia, a campanha contra o Projeto de Lei do deputado Salvador Julianeli, o debate sobre as propostas curriculares do MEC para os Cursos de Psicologia, além de questionamentos diversos sobre Associações Psicanalíticas e Conselhos de Psicologia.

Considerando contribuições mais recentes, gostaríamos de lembrar Benilton Bezerra (2002) quando assinala modificações na experiência subjetiva contemporânea, que estaria passando por uma espécie de redução ao biológico em detrimento de suas dimensões psíquicas. O "homo psychologicus", constructo erigido a partir do racionalismo universalista e do expressivismo romântico, a partir do qual o sujeito aprendeu a organizar suas experiências em torno de sua vida interior, é deslocado para um novo jogo de técnicas de si, tendo sua subjetividade fortemente ancorada na exterioridade visível da imagem do corpo e na fruição das sensações físicas. Considera-se, nesta perspectiva, estar acontecendo uma redefinição dos critérios que configuram as experiências de sofrimento psíquico, modificando-se os parâmetros do normal e do patológico no campo da vida subjetiva. O mal estar, hoje, tenderia a se situar no campo da performance física ou mental falha, muito mais que em uma interioridade enigmática.

Também Roudinesco, ao correlacionar as formas atuais de sofrimento psíquico à intensificação dos processos de normalização e medicalização, constata um conformismo e uma "tristeza da alma", diagnosticada como depressão, principalmente nas democracias dos chamados países do primeiro mundo, onde

(...) tudo se passa como se já não fosse possível haver nenhuma rebelião, como se a própria idéia de subversão social ou intelectual se houvesse tornado ilusória, como se o conformismo e o higienismo próprios da nova barbárie do biopoder tivesse ganho a partida. (ROUDINESCO, 2000: 25).

Esta mudança, assinalada como sendo o declínio da interioridade ou de um eu profundo, se por um lado indica o preocupante avanço do biopoder, por outro, significa também o desfazimento das "tiranias da intimidade", com ênfase excessiva no mundo privado em detrimento do público. Duplo aspecto do problema, portanto, já indicado por Foucault em sua analítica do sujeito moderno e do biopoder (RABINOW e DREYFUS,1995:275-291) e lembrada por Escobar, no início deste texto, quando afirma corresponder a crise atual ao desmonte dos valores, das temáticas e dos corpos da modernidade.

Assim, é o próprio terreno do psi que parece estar se deslocando de seu solo tradicional e que necessita ser colocado, pois, em análise desde seus enraizamentos com o cenário contemporâneo.

Tal situação nos leva a pensar que nos encontramos vivendo intensamente a crítica dos paradigmas que nortearam a emergência do campo psi e que, talvez como nunca, nos situamos como que provocados pelo necessário exercício de uma imaginação radical para novas modalidades de resistência e criação de novos modos de subjetivação.

Neste particular, não colocamos a questão do aprender como passagem do não saber ao saber, não se situando o processo de aprendizagem como transição que desaparece com a solução ou o resultado. Buscamos o percurso da experiência da problematização, na qual, como nos mostra Virgínia Kastrup (2001), a aprendizagem começa não quando reconhecemos mas quando estranhamos e problematizamos o real.

Pensamos que aí se encontra o cerne daquilo que consideramos importante no processo de formação universitária de recursos humanos, nos quais estamos implicados. O ato de ensinar não se dissocia do ato político de buscar produzir crítica sobre o instituído, visando a criação de linhas de fuga, não no sentido de fugir, mas no sentido de abrir novos caminhos que afirmem a cognição como subjetivação e vida.

 

PENSAR: A QUE SERÁ QUE SE DESTINA?

Sem pretendermos a posição de quem descobre o equilíbrio do ovo de Colombo, achamos interessante, contudo, apontar para um outro modo de entrar no mundo, com a vontade, quem sabe, de reinventá-lo, antes do que descobrí-lo e revelá-lo a partir de verdades já ditas e conhecidas.

Se é verdade que, constituídos e reconhecendo-nos como sujeitos, somos leitores e tradutores do mundo que se existencializa em nós, impedindo-nos de separar objetividade de subjetividade; se também é verdade que é de nossos encontros com o mundo que cavamos o nosso próprio si, que não existe, pois, como essência, mas como memória intensiva do mundo em nós; estaremos também, enquanto professores e pesquisadores, em posição de acolher e provocar a junção entre cognição e subjetivação. Tal poderá nos conduzir e mesmo nos arrastar, de sopetão, a uma linha de fuga que nos dirija a um plano de hospitalidade ao pensamento, tomado não como razão cativa e interiorizada, capaz de iluminar a verdade das essências identitárias, mas de "...liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente" (FOUCAULT,1984: 14).

Trata-se de estratégias que temos experimentado com certos intercessores do pensamento, como é o caso de Michel Foucault e Gilles Deleuze, de deixar-nos transversalizar pelas forças do tempo, na operação de rachar o presente, libertando-o da condição de suporte aos estados de coisas e enunciados atualizados e repetidos. Pluralizar o presente, introduzindo nele o cristal do tempo, fazendo-o coexistir com seu passado contemporâneo. Estratégias ético-políticas de combate aos perigos das repetições do presente, deixando que as forças disruptoras tornem compossíveis presentes incompossíveis, fazendo coexistirem passados não necessariamente verdadeiros, afirmando a potência do falso capaz de produzir uma verdade que interrompa o presente e crie outras formas de ser. Tempo de vertigens, quando nos colocamos a combater na imanência, agitando saídas em meio à proliferação do intolerável (ORLANDI,1999).

Trazer para nosso espaço de trabalho o ateliê do artista, para que, lá de dentro, possamos deixar escapar, sem pressa, as diferenças. Leveza e delicadeza em tempos violentos e acelerados. Dar a ver não somente no sentido da vista, mas também no ato. Produzir o olhar que é falado. Oferecermo-nos ao mundo como corpos de passagem, atualizadores de suas vozes, cores e formas. Quanto mais mudo, mais o mundo nos provoca, para pensar o que se destina a ultrapassar o que temos sido, fazer falar o impensado. Para além do velho humanismo, deixar-nos puxar para fora do homem atual. Como diz Francis Ponge:

Ciência-educação-cultura: tudo correria o risco de acabar numa sede inextinguível de repouso, de sono, de noite, mesmo de selvageria e de morte, não fosse a intervenção, passo a passo, de algum antídoto do mesmo nível, capaz de roubar e cumular da mesma feita o homem todo, de perturbá-lo e reassentá-lo em seu meio natural, de fazê-lo passar fome e lhe dar de comer, de propriamente recriá-lo. (1997).

 

FOUCAULT: SOBRE O INTOLERÁVEL

Em 1973, entre 21 e 25 de maio, Michel Foucault ministrou uma série de conferências na PUC-Rio. Nestas conferências Foucault identificou as práticas jurídicas como uma das mais importantes na emergência das formas modernas de subjetividade, afirmando que a partir do século XIX, mais do que punir, buscou-se a reforma psicológica e moral dos indivíduos. Segundo os organizadores do evento, a vinda de Michel Foucault

(...) constituiu-se num acontecimento que extrapolou o âmbito universitário e revelou-se como um dos eventos mais importantes na vida cultural do país em 1973. Durante uma semana, com o auditório do Rio Data Centro superlotado, Michel Foucault abordou o tema - A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS - reservando grande parte do tempo para perguntas e debates. Com entusiasmo também aceitou o convite para uma mesa redonda com professores da PUC/RJ e alguns representantes do atual pensamento brasileiro. O debate foi parcialmente publicado no Jornal do Brasil (26-03-73) e deverá sair na íntegra no próximo Caderno da PUC sob a responsabilidade do Departamento de Letras de Artes. (SANT'ANNA, 1974:IV)

Além de sua grande obra, como as História da loucura, da clínica, da prisão e da sexualidade, Michel Foucault dedicou-se intensamente a debates, aulas, entrevistas, reportagens, conferências, além de escrever incontáveis prefácios, posfácios, resenhas e introduções – todos recolhidos pelas Éditions Gallimard numa série composta de vários volumes intitulados "Dits et écrits", já em edição brasileira, desde 1999, pela Editora Forense Universitária. Segundo os organizadores da série francesa, Daniel Defert, François Ewald e Jacques Lagrange, a reunião destes textos produziu algo de inédito.

O conjunto destes textos constitui um evento tão importante quanto o das obras já publicadas, pelo que complementa, retifica ou esclarece. As numerosas entrevistas - quase todas nunca publicadas em português - permitem atualizar os ditos de Foucault com relação a seus contemporâneos e medir os efeitos de intervenções que permanecem atuais, no ponto vivo das questões da contemporaneidade, sejam elas filósoficas, literárias ou históricas. (MOTTA,1999: VI)

Não apenas dedicou-se Foucault intensamente à produção de textos considerados menores como concedeu a um destes textos, de um outro grande filósofo, uma particular atenção. Cumpre observar que foi na longa pausa de oito anos entre a publicação do primeiro volume de História da Sexualidade e os demais volumes (pausas que em geral são avaliadas erroneamente como ausência de pensamento ou produtividade) que Foucault empreendeu o estudo deste pequeno texto de Kant. Segundo nos esclarece Paulo Vaz, esta pausa foi importante para Foucault repensar a função e a concepção de sua atividade filosófica, possibilitando o deslocamento cronológico dos estudos sobre a sexualidade; a introdução de novos temas, como a questão do sujeito e da liberdade; a retomada da noção de experiência fundamental, que havia sido abandonada desde História da loucura; e a definição do pensamento como problematização. Sobretudo, possibilitou a Foucault definir sua atividade filosófica como "ontologia do presente" (VAZ, 1992:41).

Assim se refere Foucault ao texto de Kant:

(...) um periódico alemão, a Berlinische Monatsschrift, publicou, em dezembro de 1784, uma resposta à pergunta: Was ist Aufklärung? E essa resposta era de Kant. Texto menor, talvez. Mas me parece que, com ele, entra discretamente na história do pensamento uma questão que a filosofia moderna não foi capaz de responder, mas da qual ela nunca conseguiu se desembaraçar. (FOUCAULT, 2000: 335)

A questão que me parece surgir pela primeira vez neste texto de Kant, é a questão do presente, a questão da atualidade: que é que se passa hoje? Que é que se passa agora? (...) Em resumo, parece-me que se vê surgir no texto de Kant a questão do presente como acontecimento filosófico ao qual pertence o filósofo que fala. (BÜLOW,1984: 103)

É a este Kant que Foucault presta suas homenagens, afirmando que, caso possa ser inscrito na tradição filosófica, teria que ser dentro da tradição crítica, inaugurada por este pequeno texto.

Mas a preocupação de Foucault com o presente não é para perpetuá-lo, a isto se referindo por diversas vezes.

Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou refletir. (...) mas o que é filosofar hoje em dia - quero dizer, a atividade filosófica - senão o trabalho crítico do pensamento sobre o pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? (...) O 'ensaio' - que é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação -é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma 'ascese', um exercício de si, no pensamento. (FOUCAULT,1984: 13)

Você pensa que eu despenderia tanto sofrimento e tanto prazer em escrever. Acredita que eu me teria obstinado, cabeça baixa, se eu não preparasse - com as mãos um pouco febris - o labirinto onde me aventurar, deslocar meu propósito, (...) onde me perder, e aparecer finalmente diante de olhos que eu não teria mais que encontrar. Mais de um, como eu sem dúvida, escreveu para não ter mais fisionomia. Não me pergunte quem sou eu e não me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever. (FOUCAULT, 1972: 26-27)

Sobre esta "moral de estado civil" que faz a "amarga tirania de nossas vidas cotidianas", Foucault (1991:81) escreveu um pequeno texto do início dos anos 70 para saudar o livro de Deleuze e Guattari O anti-édipo, onde nos convida a transvalorar a vida e a pensar o sentido que damos à liberdade, não como ideal a ser alcançado, mas como um instrumento para dissolver o que a história dos vencedores nos fez acreditar ser necessário e não fabricado no tempo, peça por peça, em situações concretas de exercício de poder. Ou ainda: para fazer de nós o que somos e o que estamos em vias de ser. Suas aulas, nos cursos que ministrava no Collège de France, eram parte integrante de sua pesquisa e não apenas uma comunicação ou meio de "prestar contas", como a isto ele se referia ironicamente, do que havia dado por acabado a cada ano de trabalho. Roberto Machado, testemunha de seus cursos de 1973 a 1980, a este respeito comenta, em matéria do Jornal O Globo:

– Às vezes os cursos eram muito chatos mesmo, eu me via sentado numa sala lotada ouvindo falar sobre Boulainvilliers, um historiador clássico francês - conta Roberto Machado, lembrando a as aulas de 'Em defesa da sociedade'. - Mas é isso mesmo, o curso mostra o caminho das pesquisas e o caminho pode ser enfadonho. Num outro curso, na última aula, Foucault pediu desculpas e disse: 'só agora eu descobri o assunto desse semestre'. Isso é extraordinário, em geral as pessoas já sabem o que vão descobrir, ficam só confeitando o bolo. Ele fazia o bolo na sala. (O Globo, 26 de junho de 1999)

Foucault não reproduzia, em seus livros, aquilo que havia ministrado em seus cursos, por isto não o premia as longas pausas, sempre criativas, que dava entre as publicações, principalmente no projeto grandioso de uma história da sexualidade, que acabou mudando o rumo de sua pesquisa, conforme já assinalamos. Procurava ser claro, por isto declarou aos jornalistas, em pequeno intervalo de suas conferências na PUC em 1973, que "o hermetismo é um abuso de poder de alguns intelectuais que se fecham num discurso quase inacessível".(Jornal do Brasil, 23 de maio de 1973).

Também não escrevia apenas para os seus pares, o que hoje no Brasil é valorizado e avaliado em pontos pelos comitês dos órgãos de fomento à pesquisa: publicação em revista indexada com algum colaborador estrangeiro, mas de circulação bastante restrita. Portanto, o hermetismo a que Foucault se referia, e que oprime nossos alunos e o público externo às universidades, não diz respeito apenas à linguagem obscura mas também a critérios autoritários e limitadores, impostos à divulgação da produção científica. E o resultado deste processo, mais do que a exclusão do leitor é, senão a morte, a mortificação do aluno, desvalorizado como interlocutor na sala de aula e como inventor de novos caminhos para a pesquisa, agora reduzido ao vazio na relação do professor e seu computador. Foucault, em suas aulas, para centenas de ouvintes, parece conjurar a morte do aluno, reafirmando-lhe a potência como condição necessária ao desenvolvimento de suas pesquisas:

Considere-os inteiramente livres para fazer, com o que eu digo, o que quiserem. São pistas de pesquisa, idéias, esquemas, pontilhados, instrumentos: façam com isso o que quiserem. No limite, isso me interessa, e isso não me diz respeito, na medida em que não tenho de estabelecer leis para a utilização que vocês lhes dão. (Jornal O Globo, Idem).

 

SOBRE A MORTE ANUNCIADA DO EDUCADOR

Nestes diferentes tempos de nossa reflexão falamos de aulas, bancas de teses, conferências, debates, entrevistas, livros, apêndices, prefácios, introduções, textos em jornais, textos gravados e transcritos por alunos, pausas de produção, mudanças na direção das pesquisas etc., de grandes homens: filósofos; pensadores; professores, como Michel Foucault, cuja obra tanto "era debatida por filósofos analíticos preocupados com racionalidade e referência" como por "prisioneiros franceses preocupados com suas condições de vida" (RAJCHMAN,1987: 7).

De acordo com os atuais critérios de avaliação de produtividade da Pós-Graduação no Brasil dados pela CAPES e CNPQ, ou pelo menos de acordo com a maneira como tais critérios vêm sendo entendidos e aplicados em algumas áreas, nada deste tipo de produção seria considerada "científica".

Rubem Alves, conhecido autor de muitos trabalhos sobre educação, professor da UNICAMP e que hoje prefere ser chamado de escritor, porque escreve para "pessoas comuns", em entrevista ao Programa Roda Viva, da Rede Brasil-TVCultura, no dia 8 de setembro de 2003, se referindo a tais critérios, disse ter descoberto que para este sistema de avaliação não existem mais docentes, apenas pesquisadores que têm que escrever meia dúzia de artigos eruditos em revistas indexadas, lidos somente por meia dúzia de outros pesquisadores.

Melhor avaliados então seriam, os pensadores aqui citados, se tivessem trocado toda esta militância docente, esta vivacidade intelectual ou suas atividades políticas (como às vezes são definidas pejorativamente tais produções), por alguns artigos publicados anualmente em revistas indexadas, de preferência em língua estrangeira – únicas publicações atualmente consideradas "sérias", desqualificando-se, inclusive, a publicação de livros. Mas não mereceriam de nós, como têm merecido, todas as homenagens.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 3/11/2004
Aceite final: 8/01/2004


2004


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