Exatamente por ser impossível a Greve Internacional de Mulheres se faz tão necessária
Por Camille Barbagallo*
{original em inglês aqui http://novaramedia.com/2017/03/06/the-impossibility-of-the-international-womens-strike-is-exactly-why-its-so-necessary/}
A greve internacional de mulheres é impossível. É mesmo. Mas tenhamos certeza – a impossibilidade da greve das mulheres é precisamente a razão pela qual essa greve é uma das coisas mais importantes a serem feitas. A greve das mulheres não é impossível porque não se trata de uma greve 'real' (você sabe, quando os caras cruzam os braços nas fábricas); nem é impossível porque serve apenas para mulheres 'privilegiadas', ou porque mulheres não privilegiadas não podem entrar em greve. A impossibilidade emerge quando confrontamos a realidade do trabalho das mulheres e o que significa fazer greve hoje.
A coincidência entre o dia da greve internacional das mulheres e o dia internacional das mulheres é uma poderosa recordação da história das mulheres. Primeiramente, mulheres sempre trabalharam – o que acontece é que muitas vezes não recebemos um salário pelo trabalho que fazemos (1). A história do dia internacional das mulheres, começando com a greve das mulheres do setor de vestuário – muitas delas imigrantes – em Manhattan em 1908, nos força a complicar a imagem simples de que os homens trabalham e as mulheres ficam em casa, lembrando-nos da centralidade do trabalho assalariado da mulher no desenvolvimento do modo capitalista de produção e que as mulheres sempre protestaram e sempre entraram em greve. Não apenas por melhores salários e condições, mas também, como as milhares de mulheres na Rússia em 1917, por paz, por rosas e por pão.
Há muitos anos o dia internacional das mulheres vem sendo divorciado de sua história radical e vem sendo capturado por uma forma específica de feminismo – o que chamamos de 'feminismo branco', ou de feminismo corporativo ou feminismo neoliberal. Nos mandaram 'celebrar' o fato de sermos mulheres, reconhecer todos as 'conquistas' que 'nós' tivemos, do tipo o 'girl power' e o 'faça acontecer' para progredir no local de trabalho. Nas últimas décadas, nos reunimos para um ato por ano (na melhor das hipóteses) e a igualdade entre as mulheres foi reduzida a uma conversa sobre a diferença salarial e sobre como colocar mais mulheres em cargos de poder.
Mas ao longo desses anos muitas de nós também fomos críticas a esse tipo feminismo – tivemos clareza de que as 'conquistas' não foram distribuídas igualitariamente e de que para ser parte da solução o feminismo deve ser antirracista, anticolonial, anticapitalista, incluindo as trabalhadoras do sexo e as mulheres trans, colocando a distribuição desigual do trabalho reprodutivo e a realidade das mulheres da classe trabalhadora no centro daquilo que chamamos de 'trabalho das mulheres'.
Vale a pena repetir. Nós mulheres sempre trabalhamos, mas na maioria das vezes não somos pagas pelo trabalho que fazemos. Tal como lavar a louça, fazer sexo, ler uma história para uma criança na hora de dormir, lembrar do aniversário da sua mãe e lembrar de mandar um cartão a tempo. Todas essas atividades têm em comum o fato de serem trabalho, que podemos entender como sendo trabalho reprodutivo.
Trabalho reprodutivo – que pode ser pago ou não – é toda forma de trabalho realizado (geralmente pelas mulheres) para fazer e refazer as pessoas cotidianamente e de uma geração para outra. A divisão de gênero no trabalho implica que esse trabalho é feito em geral pelas mulheres, em casa ou quando saem para trabalhar. E como todo trabalho no capitalismo, esse trabalho envolve conflito, luta, violência, exploração e expropriação. Sob o capitalismo reproduzimos seres humanes como mão de obra. Reproduzimos as pessoas enquanto trabalhadores e trabalhadoras. Reproduzimos as pessoas como sujeitos de uma classe que são disciplinadas e educadas, treinadas e moldadas – para que cada uma saiba qual é “seu lugar”, seja como gerente, como mãe ou trabalhando como um cachorro para alguém por menos de um salário mínimo.
Mas quando falamos de reprodução é crucial que levemos em consideração também o potencial radical da luta sobre questões de trabalho e vida. As decisões que tomamos e escolhas que fazemos sobre como conceber, como parir (ou não), criar e educar nossas crianças, cuidar das pessoas idosas, controlar nossos corpos, organizar nossas casas, famílias e relacionamentos são cruciais para que possamos imaginar e praticar novos modelos de sociedade emancipatórios, livres de opressão racista e colonial, de exploração capitalista e controle patriarcal.
Quando colocamos esse entendimento do trabalho reprodutivo para conversar com a greve – entendida como uma retirada da força de trabalho das condições capitalistas de produção e reprodução – que é o que a convocatória por uma greve de mulheres nos desafia a fazer, a impossibilidade de fazer greve se torna mais visível: grande parte do trabalho doméstico e de cuidado (tanto o que é pago quanto o que não é) não pode parar. Claro que podemos nos recusar a fazer as tarefas domésticas por um dia ou dois, mas quando se trata de cuidar de crianças e pessoas idosas, como é isso que nos mantém vivas e mantém vivas as pessoas que amamos ou que somos pagas para cuidar, significa que esse trabalho não pode ser recusado. Sob as condições capitalistas atuais, o trabalho reprodutivo só é redistribuído por processos de mercantilização ou transferido a outras pessoas em condição não assalariada (2).
Articulando uma política que confronte o trabalho das mulheres tanto em sua capacidade produtiva quanto em sua capacidade reprodutiva somos capazes de confrontar a impossibilidade da greve de mulheres de outro modo: com a demanda de reorganização não apenas da produção, mas também da reprodução. O capitalismo depende do trabalho reprodutivo e de cuidado não pago. O capitalismo precisa deles. Temos que fazer greve contra o sistema que exige que nossas vidas tenham valores desiguais e que nosso trabalho não tenha valor nenhum. Por essa razão a liberdade pela qual lutamos nunca será alcançada no capitalismo. Temos que nos recusar coletivamente a continuar oferecendo nosso trabalho, nossos serviços e nossos cuidados àqueles que só buscam manter seu poder e seus lucros. Fazemos greve para tornar visível nosso poder, fazemos greve para vencer.
*Camille Barbagallo é membro do Plan C e é feminista, mãe, militante e pesquisadora (não necessariamente nessa ordem), atualmente vivendo no estado de Nova Iorque (USA).
Notas de tradução
(1) A autora escreve no original 'algumas vezes não recebemos' pagamentos. A Divisão de Tradução do Departamento de Infraestrutura resolveu por bem editar essa parte para ressaltar que no contexto brasileiro, embora seja comum a contratação de serviços domésticos (mal)remunerados prestados por mulheres (negras, em sua maioria), as mulheres raramente recebem remuneração por trabalhos reprodutivos realizados em casa ou junto a suas próprias famílias e comunidades. O programa Bolsa Família pode ser considerado o primeiro programa de bem estar social que dá conta de remunerar o trabalho reprodutivo, ainda que não tenha sido concebido com essa finalidade. Essa realidade difere de países onde o Estado de Bem Estar Social faz um pagamento regular à famílias em diferentes condições econômicas e de classe. Nesses casos, o Estado paga diferentes benefícios para garantir acesso à alimentação e itens básicos – o que facilita os cuidados reprodutivos sem que haja remuneração ao trabalho das cuidadoras.
(2) No Brasil as mulheres assalariadas que tenham renda suficiente para fazê-lo costumam contratar outras mulheres como empregadas domésticas, faxineiras e babás: o que implica numa forma de distribuição do trabalho doméstico e de cuidados que perpetua a regra patriarcal de divisão de gênero, enquanto aprofunda a divisão de classe e racial entre as mulheres também na dimensão do trabalho reprodutivo. Em 2016 5,9 milhões de brasileiras, o equivalente a 14% do total das ocupadas no Brasil, são empregadas domésticas. As mulheres negras são maioria entre essas trabalhadores e trabalham em piores condições, sendo também aquelas que mais frequentemente trabalham sem carteira assinada, quer dizer, embora sejam (frequentemente sub) remuneradas, não tem seu trabalho reconhecido legalmente nem acedem aos benefícios garantidos pelo Estado ao trabalho produtivo. Espera-se que as feministas brancas de classe média brasileiras tenham a dignidade de não se declarar em greve sem respeitar o direito à greve das empregadas domésticas que contratam para fazer o trabalho que os os homens não fazem.
Tradução:
Secretaria Executiva do Departamento de Infraestrutura