Protótipos/cortado, exposição de artes visuais
realizada com Prêmio de Arte Contemporânea 2011, FUNARTE, Belo Horizonte
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(trecho do texto do catálogo)
Protótipos/cortado
A constante destruição e reconstrução das cidades contamina minha produção em artes visuais há alguns anos. As destruições parecem ser repetitivas, eu sei, o que poderia permitir que eu me desfizesse dessas imagens assim que um certo número delas fosse colecionado. Contudo, a singularidade possível de cada repetição, ou seja, cada nova quase-ruína e cada desaparecimento não deixa esquecer que são processos econômicos, sociais, culturais que causam essas destruições. Portanto, não posso parar. Os processos reincidem em diversos lugares, como projeto global de comercialização das cidades, tornando o urbano um quase mesmo território, tratado como espaço em branco a ser "revitalizado". Por sua vez, são singulares as subjetividades atravessadas por essas alterações, e são comuns as lutas que reclamam a integridade das políticas para a garantia de direitos no território, de modos de vida, de habitação, de ocupação. Qual a contribuição das práticas artísticas nesse contexto de uma realidade em constante alteração cujo ciclo de construção e destruição parece não cessar?
Protótipos/cortado foi uma exposição de artes visuais que reuniu uma coleção de imagens de arquivo e fotografias realizadas por mim desde mais ou menos dez anos atrás, em diversas cidades. Antes de responder à pergunta acima, a exposição apresenta uma abordagem parcial em relação à complexidade dos problemas urbanos atuais. As imagens, que constituem o principal corpo da exposição, foram apresentadas em montagens usando fotografia, backlight, colagem e vídeo, junto aos conceitos "maquete" ou "protótipo".Os painéis criados como suporte são por sua vez outro trabalho, em cinza recortado com silhueta de escombro, são uma espécie de escultura. E mais uma proposição de que o público tomasse parte nesse imaginário realizando colagens, recortando fotografias do arquivo e compondo novas imagens (como eu tinha realizado em Londres em 2009). As colagens produzidas na exposição foram expostas junto à instalação. Apresentei também quatro textos como sugestão de leitura (que podem ser baixados na versão do catálogo disponível na internet). E dois filmes foram exibidos, "Mãos sobre a cidade" (Francesco Rosi, 1963) e "Berlin Babylon" (Hubertus Siegert, 2001).
O catálogo é feito de maneira a funcionar como um livro de recortes que você pode usar para realizar suas próprias versões dessas cenas de destruição. Recortar e remontar intenciona apresentar um pouco do processo de colagem realizado com os visitantes da exposição, e, de alguma maneira, deseja amplificar o espaço relacional que a exposição criava, mobilizando o arquivo dessas imagens, dando continuidade a conversas dispersas sobre a experiência das cidades, complexificando uma constelação de cenários e realidades sobre esse território comum.
Como o projeto toma o desafio de falar de uma realidade urbana atual a partir da minha vivência, considera o conceito de protótipo para criar uma instalação onde habitam essas imagens de maneira a fazer pensar a realidade de constantes alterações no tecido da superfície urbana e, fazer pensar (pela insistência na sua ausência) os corpos que desaparecem, que são forçados a mover-se, que buscam novos espaços para a vida. Relacionando o conceito de protótipo com o de ruína (que seria o lugar comum dessas cenas ou imagens no campo da arte), se a destruição pode gerar uma imagem atemporal, estável, intensa (por isso a possível ruína), a curta temporalidade do protótipo parece caber na justeza de algo em constante alteração, imprevisto, intensivo, temporalizado. O protótipo e a maquete são também a ironia de um poder de construção e destruição que atua nas cidades, poder que as trata antes como objetos manipuláveis numa escala não humana, mais do que como território habitado.
O desafio que refiro aqui é de considerar minha subjetividade permeável e as possibilidades de produção artística, considerando os diversos aportes a isso (portanto afecções minhas) desde algum tempo anterior em minha produção. A observação do trabalho pendular da destruição e da reconstrução me coloca em um sítio mais fluído do que aquele agarrado a qualquer imagem de estabilidade (digo isso no sentido de pensar um posicionamento em relação ao contexto, como um representação dessa análise). O peso dos projetos urbanos que desconfiguram bairros inteiros em nome de uma valorização ou substituição econômica (”gentrificação”), assim como em configurações efêmeras de construções e apropriações, tornam próprios "para o capital" a edificação, o terreno, o espaço público e, em meu ponto de vista, destroem o íntimo e "próprio para a vida". Por meio dessas alterações, apagam os direitos, planificam as diferenças, as especificidades, as micro histórias, as apropriações, as culturas, etc. Os movimentos de resistência não são inexistentes, mas encontram uma dificuldade monstra de produzir alguma força diante dos conluios entre a política governamental e os poderes econômicos. De alguma maneira, a observação e a participação nessa realidade (também nas lutas sociais) me conduzem a um olhar dessa vez talvez pouco poético e eventualmente mais documental, mais analítico, mais direto, e assumidamente parcial, precário, pequeno.
Na dimensão contrária da dureza dos projetos urbanos (uma tal monumentalidade ou poder destrutivo algumas vezes megalomaníacos – cuja contradição e subervão é bem exposta por Walter Benjamin em "O Caráter Destrutivo"), o protótipo, entendido como algo não definitivo, aponta para uma incompletude. A fragilidade da proposição artística é transposta em mais uma dobra. Como tentativa de evidenciar isso, apresento na entrada da instalação uma maquete da exposição que vemos em seguida, o que, por sua vez, faz com que a exposição tenha sua escala questionada, ou nós, nossos corpos, reduzidos nesse espaço-maquete. A maquete apresenta também dois trabalhos não existentes na instalação: um carro coberto de cimento e um piso em declive. O principal suporte dos trabalhos na exposição são os painéis em cinza, recortados com uma silhueta de escombro, que pretendem divergir das paredes apáticas dos expaços expositivos, não sendo, contudo, nem parede, nem fachada, nem imagem. A maquete ampliada se torna parte de um jogo que permite questionar seu próprio discurso, assim como qual a real dimensão dessas imagens, dessa instalação? Qual o tamanho do gesto ou o tamanho do corpo diante dessas cidades? Dessas imagens?