Altos e Baixos da Bienal. Entrevista com Claire Bishop

Enviado por claranja, ter, 2011-08-23 12:25


Claire Bishop

São Paulo

ENTREVISTA JORNAL Caderno Mais! Folha de São Paulo. 10/12/2006. (p. 6) 27º. Bienal de São Paulo, São Paulo

 

Altos e baixos da Bienal

A crítica inglesa Claire Bishop, especialista em arte social, avalia os pontos positivos e negativos da principal mostra do Brasil, que termina no próximo domingo

 

Juan Guerra/Divulgação
 

Instalação do grupo Long March Project na Bienal, feita em parceria com moradores de vilarejo chinês; à dir., a partir do alto, trabalhos de Ivan Cardoso e Paula Trope apresentados na exposição

JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A 27ª Bienal Internacional de São Paulo, que se encerra no próximo domingo, tem gerado muita discussão em torno da escolha da arte social e das práticas artísticas colaborativas como eixo central na curadoria, cujo título é emprestado dos seminários de Roland Barthes "Como Viver Junto" (Martins Fontes).
Em entrevista à Folha, a crítica de arte e professora do departamento de história da arte da Universidade Warwick (Reino Unido) Claire Bishop -que, em artigos recentes em revistas como "Artforum" e "October", tem se dedicado à análise daquilo que denomina "a virada social na arte"-, comenta a atual edição da mostra.
Bishop esteve no Brasil no início de novembro a convite do Fórum Permanente de Museus, em parceria com os departamentos de artes plásticas e de biblioteconomia da USP, para participar de mesa-redonda sobre "o social na arte".

 

FOLHA - A sra. identifica uma postura moralista por parte de críticos e curadores, quando avaliam o mérito de uma obra apenas pelo aspecto social, sem levar em conta critérios estéticos. Essa postura estaria presente na 27ª Bienal, uma vez que várias críticas à mostra reivindicam alguma forma de transcendência ou apontam a falta de obras que propiciem uma experiência estética?
CLAIRE BISHOP
- Em primeiro lugar, devo esclarecer minha distância desse par binário -arte engajada social ou politicamente x "transcendência". O paradigma romântico de arte "transcendente" foi desafiado e desmantelado por artistas ao longo de todo o século 20, precisamente porque ele apresenta a arte como algo universal que se eleva acima da realidade social e política. Não defendo uma arte da "transcendência".
Em relação à Bienal, apesar de haver na mostra deste ano uma certa quantidade de obras engajadas socialmente, a maioria delas tem também uma lógica estética. A maioria dos trabalhos consiste de esculturas, vídeos, filmes, fotografias ou desenhos, muito do que é visualmente sedutor: a obra de Raimond Chaves com capas de disco, por exemplo, as vestimentas de plástico de Laura Lima ou o trabalho de León Ferrari.
A vasta maioria das obras está localizada no interior do pavilhão da Bienal e tem sua própria sustentação dentro do espaço expositivo. Isso contrasta com o tipo de trabalho que venho criticando na Europa: trabalhos que -em nome do engajamento político direto- não enfrentam a questão de sua própria representação para outros públicos. Esses projetos são com freqüência dependentes de texto, diagramas e fotografias para transpor ao espaço expositivo atividades que ocorreram em outro lugar.

FOLHA - A edição atual da mostra não é, portanto, um exemplo emblemático daquilo que a sra. denomina "virada social na arte"?
BISHOP
- Minha sensação -a partir de conversas que tive com pessoas em São Paulo e de minha visita à Bienal de 2002- é que o Brasil teve duas exposições conservadoras sob a curadoria do alemão Alfons Hug.
Com isso, quero dizer: mostras com uma preponderância de pinturas, fotografias de grandes dimensões e esculturas objetuais, tudo com forte valor de mercado. Isso fez com que o Brasil perdesse o passo em relação aos desenvolvimentos na arte contemporânea.
Alguns desses desenvolvimentos tomam a forma de projetos engajados socialmente, transdisciplinares, em geral envolvendo colaborações com não-artistas ou outros especialistas, como arquitetos, geógrafos, ativistas. Na Bienal deste ano, Marjetica Potrc seria um bom exemplo dessa tendência.
Eu não me oponho a isso em princípio, apenas quando a obra fracassa em pensar sua subseqüente recepção. Há um exemplo evidente desse tipo de trabalho na Bienal: o artista grego Vangelis Vlahos, que apresenta sua pesquisa acerca do edifício Gropius, em Atenas, em formato de repreensível austeridade e não resolvido. Por que essa pesquisa não é um livro?
Outro exemplo seria o artista esloveno Tadej Pogacar, cuja apresentação corporativa de um projeto para aumentar a consciência sobre trabalhadores do sexo é -à parte sua estratégia óbvia e não inspiradora de camisetas em displays-, mostrada com toda a imaginação de uma companhia de relações públicas medíocre.

FOLHA - Rafael Campos Rocha, em artigo sobre a Bienal, apelidou-a de "bienong", em referência às organizações não-governamentais. Como estabelecer uma distinção crítica entre arte e assistencialismo?
BISHOP
- A distinção para mim está na medida em que esses projetos também refletem sobre sua apresentação, recepção e circulação dentro do domínio da arte contemporânea.
As pessoas podem se sentir desconfortáveis com alguns dos projetos exibidos porque eles operam com um pé no domínio da arte contemporânea e outro no âmbito do chamado "mundo real". Temos de aprender a viver com esse desconforto, que é algo comparável ao final dos anos 1960, quando artistas começaram a desmaterializar o objeto de arte e trabalhar conceitualmente.
Mudanças semelhantes estão acontecendo hoje: quando vemos algo em uma galeria, não estamos necessariamente vendo todo o trabalho. Estamos vendo parte de um projeto, um "non-site" que existe em relação dialética com o "site", como propôs Robert Smithson.
Estou interessada em encontrar uma maneira de analisar essa arte que não caia na armadilha de apenas considerar as justificações morais ou políticas de sua existência.
As justificações são importantes, mas, se terminarmos julgando obras somente nestes termos, ficaremos apenas com uma arte didática.
Minha impressão da 27ª Bienal é a de que não se trata de uma exposição moralista. E isso porque a maioria dos projetos opera de forma bem-sucedida no interior do espaço expositivo e possui uma lógica estética que é íntegra em relação à especificidade do projeto.
Por exemplo, Paula Trope usa uma câmera "pinhole" [câmeras de orifício feitas a partir de latas recicladas] em seu trabalho colaborativo com garotos de rua no Rio, e os efeitos formais dessa fotografia são um fator importante na recepção das imagens.
A câmera "pinhole" confere um efeito sobrenatural, distorcido, que é apropriado à representação de seu mundo de fantasia do Morrinho; ela também frustra nosso desejo por uma visão clara e "objetiva" desse mundo (com todas as conotações de poder que esse olhar poderia trazer) e, assim, espelha nosso desejo voyeurístico de ter acesso a esses conflituosos e, quem sabe, perigosos adolescentes.
Tendo dito isso, há projetos na Bienal que são muito menos bem-sucedidos, apesar de terem uma forte presença escultural. A maior parte do piso térreo é espetáculo vazio: a instalação com guarda-chuvas de Marepe e o trabalho de Nikos Charalambidis assim como o mercado de Meschac Gaba em um piso superior são fracos conceitualmente.
Há muita fotografia documental que funciona como espaço reservado para problemas políticos em países específicos, em vez de serem escolhidas como fotografias narrativa ou visualmente complexas. Muitos dos trabalhos comissionados são decepcionantes: Vladimir Arkhipov e Antoni Miralda, em particular, parecem resultado de uma fórmula.

FOLHA - No caso do coletivo Long March Project, a exibição dos recortes de papel ao lado de fichas biográficas de seus respectivos autores é conceitualmente consistente ou "politicamente correta"?
BISHOP
- O argumento que utilizei antes sobre ver apenas metade de um trabalho na galeria é particularmente verdadeiro no caso do Long March. Este é um projeto de cultura visual (arquivo das influências na tradição de recorte de papel na China rural), um projeto político (censo composto de estatísticas sobre os moradores da região) e um projeto social (levar uma infra-estrutura de lazer básico a povoações rurais).
Portanto, o fato de os arquivos serem expostos com os recortes de papel não é uma decisão "politicamente correta" no que se refere à autoria colaborativa. É integral à "raison d'être" conceitual do Long March Project.
Na minha opinião, o projeto fornece um pungente contraponto à maioria da arte contemporânea chinesa em circulação internacionalmente hoje: obras em vídeo que exibem uma fascinação alegre pela adoção, de forma incrivelmente acelerada, do capitalismo.
Portanto, a questão que se coloca para mim ao observar algo como o Long March Project é: o que significa esse tipo de projeto transdisciplinar, multifacetado, estar ganhando espaço no âmbito da arte contemporânea hoje? Sua presença na bienal testemunha uma resistência a (indesejáveis) mudanças sociais e políticas na China.
Mas o fato de que isso seja obtido não por meio de ilustrações diretas ou documentais -mas na forma de um censo e de um arquivo de arte tradicional que, todavia, revela o impacto da modernidade e da pós-modernidade- é estética e politicamente estimulante.
Isso é bastante diferente do tipo de questão que o projeto banal de Tadej Pogacar levanta ao chamar a atenção para a prostituição. Nesse caso, fico me perguntando: por que essas camisetas são tão terríveis? Por que o desfile de moda é tão pouco convincente como um desfile de moda? Por que o tom de sua linha do tempo é tão descuidadosamente corporativo? Eu não detecto nenhuma visão artística na concepção e apresentação dessa obra.

FOLHA - Quais obras mais lhe chamaram a atenção na Bienal?
BISHOP
- Existem várias maneiras de apreciar exposições: como um conjunto de trabalhos individuais, como uma iniciativa curatorial, como um projeto intelectual. Avalio essa bienal como um projeto intelectual. Entre os artistas que já me eram familiares, Roman Ondák, Tacita Dean, Goshka Macuga e Lida Abdul fizeram apresentações vigorosas.
Fiquei satisfeita em me deparar com o trabalho de Laura Lima, Raimond Chaves e Simon Evans pela primeira vez; a descoberta mais prazerosa foram os esotéricos filmes de João Maria Gusmão e Pedro Paiva.
As reconstruções de Matta-Clark foram informativas do ponto de vista da história da arte, mas o filme de Ivan Cardoso com Hélio Oiticica nos anos 1970 foi revelador.

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