Das bicicletas brancas às bicicletas sujas: a ordem da simulação

Enviado por aarquivista, sex, 2016-01-22 05:42

Belém

DAS BICICLETAS BRANCAS ÀS BICICLETAS SUJAS: A ORDEM DA SIMULAÇÃO

Luizan Pinheiro*

 

 

 

Mais uma vez o equívoco alimenta as intervenções urbanas como modalidade artística em Belém. O esvaziamento de força e potência das experiências estéticas urbanas emerge nas mãos de artistas que insistem em fazer das intervenções a simulação agônica de suas práticas.

A última cena foi apresentada pelo artista Murilo Rodrigues, que lançando mão da intervenção, o Plano das Bicicletas Brancas, surgido em Amsterdam na década de 60; esvazia a força provocativa, anárquica e questionadora do Provos,[1] em nome de um ecologismo em moda.

O artista encalacra um processo intervencionista histórico de matiz revolucionário, numa versão tonta nos moldes de uma simulação estética de fundo ecológico, na intervenção-exposição denominada "DESLOCAMENTOS", sob as bênçãos do Banco da Amazônia, através do Edital de Artes Visuais/ 2009.

Não que a questão ecológica seja menor, ao contrário, é um campo aberto que precisa de intervenções e processos políticos intensos, a produzir amplos combates. Mas se valer das forças de intervenção política dos anos 60, para mandar recadinhos ecológicos ao poder público é simulação descarada. Não realiza uma, (a intervenção); nem fortalece outra, (a questão ambiental).

Soa falso, porque "quatro gatos pingados" rodando nas áreas bem urbanizadas da cidade, não produzem impacto na relação homem-cidade, não homenageia o Provos, como queria o artista, muito pelo contrário, reverencia mais uma vez a mecânica do Sistema de Arte através do Edital. Qualquer um pode se atirar nos braços dos Editais sem o menor pudor, eles servem para viabilizar a explosão do pensamento na direção da mesmidade cotidiana, para além dos condicionamentos que os Editais propõem.

Mas não é o que ocorre com as Bicicletas de Murilo, pois uma moral de fundo se afirma na fala do próprio artista. Ele diz: "...isso tudo faz parte dum projeto ambiental para diminuir a emissão de gás carbônico em Belém, então, eu agora venho lá do Julia Seffer todo dia de bike aqui pro centro e pra Federal (Ufpa), e depois, volto pra casa na moral".  (trecho da entrevista). Deve ser interessante mesmo para a maior parte da população de Belém, voltar para casa na moral de ciclista, na hora do rush em dias de chuva e trânsito completamente enlouquecido. O que nos leva a perceber que, andar de bicicleta branca num sábado á tarde (11/04 - dia da intervenção), pós-feriado e com a cidade vazia - deve produzir um alto grau de consciência política nos gestores de política pública ambiental e ecológica de Belém.

A ordem da simulação das intervenções urbanas cristaliza-se de modo flagrante, pois, cada vez mais, se agenciam modos de reverência do próprio ato artístico em si, egóico, moralista e esvaziado de sentido, levando a encobrir as contradições das  formas de poder determinantes ao funcionamento real da cidade, seja ele político, econômico, social, artístico e cultural. Confrontar os poderes que regem a cidade por uma moral de ciclista é esquecer as formas de absorção desses poderes no âmbito da sociedade do espetáculo. E o Provos sabia disso, fazia-o com consciência combativa, e não ingênua. Diziam: "Provos tem consciência de que no final perderá, mas não pode deixar escapar a ocasião de cumprir ao menos uma qüinquagésima e sincera tentativa de provocar a sociedade".

Provocação é uma das chaves nas estratégias de produção de novas formas de intervenção na cidade; e, como uma das heranças Provo, cabe inspirar-se nela, plagiá-la, tal como Tom Zé propôs em a Estética do Plágio no disco Com Defeito de Fabricação (1998). O compositor dispara: "podemos concluir portanto que acabou a era do compositor. A era autoral, inaugurando-se a era do plágiocombinador. Processando-se uma entropia acelerada". O que não é o caso das bicicletas de Murilo, pois serviram apenas para sujar a cidade, a paisagem, esquecendo sua dimensão entrópica, promovendo uma brancura-morta de um vazio-eterno ou um "brilho eterno de uma mente sem lembrança". Emudecendo-se a si mesmo pela forma equivocada com que se alimenta do suporte institucional. Este já todo configurado na sua condição espetacular-auto-marketeira. Assim, as bicicletas de Murilo agenciam form as emudecidas de compreensão da cidade, evitando o caminho mais complexo que é a cidade na sua condição caótica.

Giulio Carlo Argan em seu História da Arte como História da Cidade enfatizou a cidade como produto artístico; nessa direção, as intervenções são esses eventos que se dão no próprio corpo do objeto que justifica suas formas-acontecimentos. Em si, a cidade já é o campo de toda experimentação possível que escapa às ingerências de um circuito oficial.

Ao criarem formas paralelas de intervenção, rebatidas sobre um circuito oficial viciado, que insiste em territorializar as formas de compreensão da cidade, os artistas e não-artistas (no sentido proposto pelo artista americano Allan Kaprow), mantêm os conflitos e combates que fortalecem as próprias experiências urbanas.

Daí a necessidade de um outro lugar, o vazio-pulsar, explosivo, que nega os acordos bancários-estéticos-curatoriais; que se afirma pela força de negação dos mecanismos de controle dos diversos espaços da cidade, não reverencia uma moral elitista-ciclista, nem roda sobre aros entontecidos na brancura doída de seu próprio vazio.

 

 

 

* Doutor em Artes Visuais/ História e Crítica da Arte. Professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal do Pará - FAV/ UFPA.

 

 

 

 

[1] GUARNACCIA, Matteo, PROVOS : Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad Editora, 2003.


2009



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